Nossos especialistas globais apontam as tecnologias que devem despontar ou se fortalecer este ano com o amadurecimento da indústria e quais delas já estão acontecendo no Brasil
Texto: Bruna Corsato
Revisão: Camila Lupetti, Guilherme Vilela, Raquel Casselli e Vinícius Gallon
Após anos de crescimento constante, a indústria de proteínas alternativas caminha para uma fase de consolidação, com empresas do setor entrando em estágios mais avançados e aprimorando os produtos que chegam ao mercado. Mas ainda há espaço para crescimento e inovação, além de muitas oportunidades a serem exploradas nesse ambiente. O time de especialistas globais do The Good Food Institute apresenta quais são as tendências que devem dominar o setor em 2022.
1- A fermentação vai abrir novos caminhos para os produtos vegetais
A utilização de processos de fermentação na indústria plant-based vem crescendo como um dos pilares da produção de alimentos vegetais e a tendência é que essa posição se consolide através de lançamentos que devem chegar ao mercado em 2022.
EM 2021, a norte-americana Perfect Day criou uma proteína de soro de leite (whey protein) a partir de fermentação de precisão, técnica que utiliza microorganismos para produzir ingredientes funcionais específicos, como proteínas, moléculas de sabor, vitaminas e até gorduras. O whey fermentado chegou aos consumidores dos Estados Unidos sob a forma do Brave Robot, o serve de base vegetal da Perfect Day. Mas a lista de lançamentos que aderiram ao novo ingrediente não parou por aí: houve também o cream cheese da Modern Kitchen, mistura para bolo da Climate Hero e até novo leite alternativo no Starbucks.
A tendência é que a indústria continue a explorar essa tecnologia, aprimorando características sensoriais de produtos já existentes e criando novidades para conquistar o consumidor. As previsões de lançamentos deste ano incluem:
A primeira proteína de ovo fermentado do mundo. A responsável pela inovação é a Every Company e chegará ao mercado através dos smoothies da Pressed Juicery.
Esse é só o começo, prepare-se para ouvir falar muito de fermentação no mercado plant-based em 2022.
2- Mix de tecnologias para criar produtos híbridos
Quando falamos em proteínas alternativas, estamos nos referindo a uma categoria que inclui diversos processos de produção resultando em produtos à base de plantas, de fermentação e de cultivo de células. A tendência é que esse ano vejamos produtos feitos através da combinação dessas tecnologias chegarem ao mercado, que são conhecidos como produtos híbridos:
Além disso, deve se tornar mais comum o uso de machine learning e inteligência artificial no desenvolvimento do perfil de sabor e textura de produtos vegetais para se aproximar mais da experiência sensorial da carne tão desejada pelo consumidor. Empresas como a NotCo, Culture Biosciences e Climax Foods já estão atuando nessa direção.
3- Produtos vegetais se tornarão cada vez mais segmentados e fiéis aos produtos animais
3.1 Frutos do mar: o investimento neste setor bateu recorde em 2021, chegando a $116 milhões de dólares. Já são mais de 87 empresas no setor produzindo frutos do mar a partir de plantas, fermentação ou cultivo de células. A expectativa é de que esses produtos cheguem a lojas e restaurantes já em 2022.
No Brasil:
3.2 Cortes inteiros de carne: 2022 deve ser o ano em que vamos ver cortes inteiros de carnes vegetais se tornar realidade, contemplando uma variedade maior de preparos na cozinha. Já está no mercado o filet mignon vegetal da Juicy Marbles e a Umiami está desenvolvendo uma nova tecnologia para produzir cortes inteiros em escala.
No Brasil:
3.3 Ovos: esta é uma das categorias plant-based que cresce mais rapidamente, com espaço para produtos como ovo cozido, clara de ovos e uma mistura para que sirva para o preparo de diversos pratos. Vemos grande potencial no uso da fermentação para produzir ingredientes de ovo que melhorem o sabor de produtos vegetais.
No Brasil:
3.4 Leite vegetal: se antes o foco de produção eram os ingredientes vegetais, agora os esforços se concentram em atingir sabor, textura e funcionalidade idênticos aos do leite tradicional. Novidades nesse sentido como o whey da Perfect Day e a caseina da Nobell Food devem avançar essa frente e ser utilizados não apenas por leites vegetais mas também em iogurte, queijo e sorvete vegetais.
No Brasil:
4 – Aprovações regulatórias para carne cultivada estarão mais próximas
Até janeiro de 2022, o único país a aprovar a venda de carne cultivada foi Singapura, a partir de um processo que teve início em dezembro de 2020. Entretanto, é possível quer consumidores de outras partes do mundo provem carne cultivada ainda esta ano, com o governo dos Estados Unidos trabalhando ativamente em um marco regulatório para o setor desde 2018. Diversas empresas como UPSIDE Foods, Wild Type e BlueNalu já indicaram estar prontas para comercializar produtos de carne cultivada assim que a regulamentação for aprovada.
No Brasil
5 – Sustentabilidade será prioridade para consumidores e levará a indústria a incorporar melhores práticas
A sustentabilidade é um importante motivador para o consumo de proteínas alternativas, principalmente entre os consumidores mais jovens, e seus benefícios sobre alimentos de origem animal são bem estabelecidos em fatores como uso da terra, emissões de gases de efeito estufa, uso da água e poluição.
Essa preocupação com a sustentabilidade influenciará cada vez mais o momento da decisão de compra. Vemos também investidores cada vez mais identificando que as proteínas alternativas são uma indústria chave para investimento em ESG.
Várias soluções de sustentabilidade já estão sendo exploradas por atores do setor:
No Brasil
6- Empresas de proteína alternativa vão continuar a bater recordes de investimento
Com o amadurecimento da indústria, esperamos ver empresas de proteína alternativa levantando rodadas de investimento maiores à medida que mais delas entram no estágio de crescimento. O ano passado viu as maiores rodadas do setor até o momento, incluindo uma rodada Série B recorde de US$ 347 milhões da empresa de carne cultivada Future Meat Technologies, com sede em Isarel. Também esperamos ver mais IPOs (Oferta Pública Inicial) e aquisições em 2022, à medida que as empresas atingem estágios mais avançados de desenvolvimento.
No Brasil
7- Governos vão se envolver mais
Lideranças de todo o mundo, incluindo UE, Israel e Canadá, investiram mais de US$ 66 milhões em projetos de pesquisa sobre proteínas alternativas. Esse número é apenas uma fração dos mais de US$ 3,4 bilhões arrecadados de forma privada por empresas de proteínas alternativas apenas no primeiro semestre de 2021. O financiamento público para pesquisa é essencial para escalar o setor no ritmo necessário, e esperamos ver mais investimentos públicos dedicados a atender às necessidades de infraestrutura e pesquisa de alta prioridade que beneficiarão todo o setor.
Manter as emissões globais abaixo de 1,5 graus Celsius até 2050 é cientificamente impossível sem uma transformação no sistema de produção global de alimentos, especialmente na obtenção de proteínas para consumo humano. As proteínas alternativas são parte inexorável nessa equação por serem soluções sustentáveis, duráveis e seguras, capazes de contribuir para o atingimento das metas climáticas globais.
Novas medidas visam aumentar práticas de sustentabilidade e segurança alimentar no país incentivando “alimentos do futuro”
Texto: Bruna Corsato
Revisão: Alexandre Cabral e Vinícius Gallon
Créditos da imagem: Aleph Farms
O Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais da China anunciou o plano agrícola do país para os próximos cinco anos. O documento inclui carnes cultivadas, chamadas pelos chineses de “alimento do futuro”, como parte do planejamento para lidar com as questões de sustentabilidade e segurança alimentar no país. A decisão inédita solidifica a expansão e aceitação pelas quais o setor de carne cultivada passa no mundo todo. A decisão inédita do país asiático de produzir carne cultivada em escala até 2027 também sinaliza iniciativas do governo chinês para mitigar os efeitos da crise climática.
A China é o país responsável pelo maior índice de emissão de gases de efeito estufa no mundo todo, sendo boa parte proveniente da pecuária. Segundo pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas em 2014, 14,5% das emissões de gases de efeito estufa mundiais são provenientes da pecuária e, destes, 29% vêm da China. “Ao incluir tecnologias alimentares revolucionárias, como a carne cultivada, os líderes chineses estão dizendo publicamente o que outros ao redor do mundo esperavam há muito tempo: que a China pretende se empenhar na construção do futuro dos alimentos”, disse Mirte Gosker, diretora executiva do The Good Food Institute Ásia Pacífico.
O investimento em produção de carne cultivada permite que a China diminua as emissões geradas pela pecuária tradicional e importação de carne, que aumentaram signficamente após surtos de peste suína africana no país em 2019 e 2020 – trazendo também questões de segurança alimentar para o centro do debate nacional chinês. A carne cultivada diminui significativamente o risco da transmissão de doenças como essas, pois é produzida fora do animal, em ambiente controlado.
O setor de carne cultivada vem mostrando desenvolvimento promissor nos últimos anos, mas ainda são necessários grandes investimentos em pesquisa para que a tecnologia consiga ganhar escala comercial, além de regulações e legislações favoráveis por parte dos governos nacionais locais. A iniciativa da China certamente é um passo nessa direção e deve dar início a uma fase de aceleração em pesquisa científica no mercado. “Esta é uma das ações políticas mais importantes na história das proteínas alternativas.”, conclui Josh Tetrick, CEO da empresa de ovos vegetais Just Inc.
Brasil também está na corrida para liderar o mercado de carne cultivada
No Brasil, já são vistos movimentos similares acelerando o desenvolvimento dessa indústria por aqui. Com apoio técnico do The Good Food Institute Brasil, A JBS entrou para o setor de carne cultivada investindo USD $100 milhões, um recorde para o setor. O valor foi direcionado ao início da construção do Centro de Pesquisa em Proteína Cultivada no Brasil, que deve ser inaugurado ainda este ano, e à aquisição da espanhola BioTech Foods, uma das líderes no desenvolvimento de biotecnologia para a produção de proteína cultivada.
O apoio técnico do GFI Brasil também possibilitou outra parceria envolvendo uma gigante de carne tradicional, a BRF. Cooperação firmada com a israelense Aleph Farms, fará uso do know-how da foodtech para adaptar produtos de carne cultivada para o gosto do brasileiro. Em um segundo momento, uma unidade fabril será construída em território nacional para atender o mercado interno.
Outro avanço significativo para o setor foi realizado pelo Banco de Células do Rio de Janeiro (BCRJ), que anunciou ter cultivado tecidos de quatro espécies de carne de pescado. A previsão é de que a foodtech tenha um protótipo de seus produtos para teste já em 2022.
Já são vistas também iniciativas de capacitação profissional para atuação na área. A Universidade Federal do Paraná (UFPR) tem oferecido regularmente cursos relevantes para o setor, como “Carne Cultivada e Empreendedorismo” e “Introdução à Zootecnia Celular“, ambos realizados em parceria com o GFI Brasil.
Além disso, o GFI organizou um workshop para os reguladores do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (DIPOA/MAPA) e da Gerência Geral de Alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (GGALI/Anvisa). O evento abordou técnicas de cultivo celular para a obtenção de produtos cárneos, bem como questões a serem consideradas no processo de regulação para garantir a segurança alimentar do processo e do produto final.
No Brasil, a Secretaria Geral de Alimentos da Agência Nacional de Saúde (ANVISA) e o DIPOA/MAPA, serão responsáveis por analisar os pedidos de aprovação de produtos cárneos cultivados. “A ANVISA está empenhada em compreender os desafios de segurança alimentar e rotulagem impostos pela carne cultivada e está em processo de desenvolvimento de uma estrutura regulatória que abranja produtos cárneos cultivados. O GFI Brasil propôs em 2021 um protocolo único para carne cultivada dentro da estrutura de novos alimentos existente no Brasil. Esperamos que o Brasil realize uma análise de impacto regulatório em 2022”, afirmou Alexandre Cabral, diretor de políticas públicas do GFI Brasil..
De acordo com a ANVISA, o Brasil planeja adotar um modelo semelhante ao dos Estados Unidos e da União Europeia. As empresas primeiro enviarão uma solicitação incluindo informações sobre seu produto ao regulador no início do processo de pesquisa e desenvolvimento. Então, o regulador analisará a segurança do produto, provavelmente sob a atual estrutura regulatória de novos alimentos.
A novidade foca no food service e foi lançada no Dia Mundial das Pulses, durante feira do agronegócio, em Cascavel-PR
Texto: Bruna Corsato
Revisão: Vinícius Gallon
Créditos de imagem: R & S BLUMOS
Anos de crescimento da indústria plant-based no país levaram ao surgimento de uma demanda entre as empresas do setor: o desenvolvimento de matérias-primas nacionais para serem utilizadas na composição de produtos feitas de planta. Pesquisa realizada pelo The Good Food Institute Brasil mostrou que 84% das empresas de proteína vegetal brasileiras considera essa uma prioridade alta. A R & S BLUMOS, empresa que fornece ingredientes e tecnologias inovadoras para a indústria, mostra que é possível fazer uso da biodiversidade do país para atender às demandas da indústria.
A Carnevale WUT, proteína vegetal feita a partir de matérias-primas 100% nacionais como a soja não-transgênica e concentrado de feijão carioca, foi desenvolvida utilizando extrusão úmida, tecnologia que possibilita produzir fibras de carne vegetal análogas às de animais. O produto será lançado custando menos de R$30,00 o kg para o food service, antecipando as previsões do setor de proteínas alternativas de vender carne vegetal mais barata do que a convencional em 2023. “O produto promete chegar ao consumidor a um preço bastante competitivo. Sem dúvida, esse lançamento está alinhado com o que temos observado sobre os anseios do consumidor a respeito desse novo mercado”, pondera Raquel Casselli, gerente de engajamento corporativo do GFI Brasil.
As vantagens do Carnevale WUT vão além de preço acessível e ingredientes nacionais. Ao passar pelo processo de extrusão úmida, o produto já é cozido, o que significa mais praticidade no preparo sem perda de rendimento do prato final. “Pela primeira vez, estamos criando uma proteína 100% brasilera com com aptidão para análogos de carne bovina de panela.” conta Fernando Santana, da R & S BLUMOS. A ideia é de que encontre um grande mercado no food service e entre chefs de cozinha e depois, com algumas atualizações, que chegue aos açougues”, conta Fernando Santana, diretor de vendas da R & S BLUMOS.
O lançamento aconteceu durante o Show Rural Coopavel, evento anual com foco em inovação tecnológica e sustentabilidade para o agronegócio, explicitando as oportunidades de colaboração entre produtores rurais nacionais e o mercado plant-based. “O agro brasileiro vai se beneficiar muito pois este produto tem um potencial gigante tanto de exportação quanto de consumo no mercado local.”, explica Fernando.
Lançamentos como este sinalizam a consolidação do mercado de proteínas alternativas no Brasil, que segue crescendo de forma mais madura à medida que as empresas investem em novas tecnologias e conquistam ainda mais os consumidores. “O lançamento de hoje une diversos aspectos que o consumidor brasileiro vem demonstrando procurar em produtos vegetais. O seu formato pronto para ser utilizado em receitas do dia dia, utilizando ingredientes nacionas, aproveitando a nossa biodiversidade, ingredientes produzidos pelo nosso agronegócio e também a questão do custo, cada vez mais decisivo na decisão de compra do consumidor.”, conclui Raquel.
pro Bruna Corsato
O setor de proteínas alternativas é reconhecido por suas tecnologias disruptivas, do cultivo de células para criar músculo e gordura animal a cortes de carne feitos em impressora 3D. Aprimorar as técnicas disponíveis e despontar à frente com a próxima inovação que aprimore a experiência de consumo lançou as empresas de produtos vegetais em uma verdadeira corrida pelo santo graal vegetal.
Entretanto, o que vem ganhando cada vez mais espaço nesse cenário não é exatamente uma nova descoberta: é a fermentação. Apesar de ser uma técnica de produção milenar e amplamente utilizada na produção de diversos alimentos e bebidas, de pão à cerveja passando por tempeh e kimchi, sua aplicação na criação de alimentos que mimetizam a carne animal é relativamente recente e ainda tem muitas oportunidades a serem exploradas.
A fermentação continua sendo o que se ensina nas escolas: processo no qual os microrganismos realizam a transformação de matéria orgânica em outros produtos e energia. Ou seja, é a forma que esses seres encontram de produzir energia para o desempenho de suas funções biológicas. O que a torna atrativa para as empresas do setor é sua versatilidade, baixo custo e, principalmente, seus resultados. Através da técnica é possível entregar sabor, textura e aparência muito similares ao produto animal, uma exigência cada vez mais presente entre os consumidores flexitarianos.
Conheça os diversos processos de fermentação:
A fermentação tradicional utiliza bactérias e fungos, grupo que inclui bolores e leveduras, no processamento de ingredientes vegetais para transformá-los em alimentos com sabor e textura realçados. Esse é o caso do tofu e do tempeh, ambos feitos a partir dos grãos de soja fermentados. Queijos e iogurtes também passam pelo mesmo processo, tanto o de origem animal quanto o vegetal.
Biomassas vegetais também são excelentes matérias-primas/substratos para fermentação, sendo uma forma rápida e eficiente de produzir grandes quantidades de alimentos ricos em proteínas. No conceito de fermentação de biomassas ocorre o desenvolvimento de fungos filamentosos que produzem a micoproteína ou proteína de micélios, uma biomassa fúngica semelhante a um filamento. Esse filamento tem alto teor de proteína e dará origem a análogos à carne com textura similar à carne.
Proteína de micélios
O nome soa como novidade, mas o micélio nada mais é do que o leque de estruturas finas, similares a raízes, que fungos e cogumelos formam embaixo da terra enquanto crescem. A proteína micelar está causando grande impacto na indústria de proteínas vegetais devido a sua eficiência, resultando em grandes quantidades de proteína a custos baixos quando comparados com outras formas de produção de carne vegetal.
O processo acontece em câmaras giratórias que alimentam o fungo com uma solução nutritiva para o seu desenvolvimento, normalmente levando açúcar e uma matéria-prima vegetal como trigo, soja, ervilha e muitas outras. Após poucos dias, o micélio está pronto para ser colhido em grandes quantidades pelas próximas semanas ou até meses. A micoproteína então é congelada para unir suas raízes longas, que conferem ao produto final a textura similar à carne. Por fim, a proteína de micélios pode ser moldada em diversos tipos de carne vegetal.
Outra grande vantagem é sua maleabilidade e versatilidade. O micélio pode ser a solução para mimetizar a textura e entregar cortes inteiros de carne pela formação de suas estruturas, resolvendo assim um dos maiores desafios enfrentados atualmente pela indústria de proteínas alternativas.
O cenário internacional
Já existem diversas foodtechs se aventurando na fermentação sob diversas formas e também apostando na proteína micelar como a nova revolução plant-based. Conheça algumas marcas:
A fermentação de precisão é outro processo onde se aplicam os conceitos de fermentação, porém neste caso, usa-se de hospedeiros microbianos como “fábricas de células” para produção de proteínas e outros ingredientes funcionais como: gorduras, aromas, vitaminas, pigmentos que permitem elaborar produtos análogos de carnes, de ovos, lácteos, frutos do mar e muito mais.
Esta tecnologia tem a capacidade de transformar microrganismo numa fábrica de células para a produção de ingredientes funcionais específicos. Esses ingredientes funcionais são importantes na melhoria sensorial e nas características de funcionalidade de produtos plant based. Alguns exemplos são:
E o Brasil?
Por aqui, proteínas alternativas produzidas a partir de fermentação ainda são uma conversa bastante nova. A rica biodiversidade do país pode, mais uma vez, vir a ser uma grande vantagem se utilizada estrategicamente. “Uma das vantagens de se investir em fermentação no Brasil, é justamente o fato do país ser uma grande potência agrícola e possuir diversas fontes de proteínas vegetais nacionais a serem exploradas.”, explica Luciana Fontinelle, especialista de ciência e tecnologia do GFI Brasil.
“Muitas vezes estas fontes apresentam barreiras tecnológicas e/ou sensoriais para serem utilizadas na produção de produtos plant based. E a Fermentação entra como aliada para quebrar estas barreiras, possibilitando a utilização mais efetiva destas.”, acrescenta.
Essa grande gama de fontes de proteína vegetal encontradas em nosso país nem sempre apresenta características funcionais, nutricionais ou sensoriais desejadas para desenvolver os produtos vegetais. A fermentação representa uma grande aliada para solucionar essas questões, viabilizando o aprimoramento das características desejadas e resultando em produtos vegetais mais saborosos, nutritivos e similares ao produto de origem animal. Desta forma, a indústria pode entregar produtos cada vez mais competitivos feitos a partir de matérias-primas nacionais, gerando impacto positivo para a economia nacional.
Além disso, a fermentação é uma tecnologia muito eficiente e pode usar como substratos resíduos das agroindústrias tornando os processos mais viáveis economicamente e permitindo um aproveitamento integral dos alimentos.
Na contramão das inovações alimentares, iniciativas tentam barrar o desenvolvimento do setor, mas este é um mercado do “e” e não do “ou”. Há espaço e demanda para toda a indústria.
Texto: Alexandre Cabral
Revisão: Vinícius Gallon
Mais um ano se inicia. Deixamos para trás um ano complexo, onde a vida em geral foi novamente pautada pela pandemia, onde experimentamos o alívio da vacinação de grande parte da população e a incerteza sobre novas variantes do vírus e seus efeitos. Abrimos um ano onde temos a sensação de estarmos na segunda metade da luta contra a Covid-19 e a certeza de que algo de novo precisa ser feito na relação entre o homem e o planeta.
Hora de ouvir os ecos das discussões sobre sistemas alimentares (UNFSS) e suas conexões com os desafios da sustentabilidade (COP26). Hora de olhar para os números crescentes da fome no mundo. Hora de convergir as forças em prol de um tema crucial que atravessa diversas dessas questões: a oferta de proteína obtida de forma sustentável para consumo humano, não importa a fonte. A indústria da proteína de origem animal intensificou o debate nessa direção, anunciando diversos programas em busca da neutralidade de suas emissões nas próximas décadas, dentre elas Danone, JBS e BRF.
A indústria de proteínas alternativas pode colaborar muito neste debate. Está provado que é possível juntar alguns ingredientes usuais na indústria de alimentos com outros desenvolvidos especificamente para esse mercado e criar um alimento gostoso, sustentável e seguro, que pode ser preparado e consumido da mesma forma que o produto de origem animal, mas utilizando uma quantidade radicalmente menor de terra e água em seu processo produtivo.
Essa é uma corrida tecnológica que está acontecendo em diversas partes do mundo e tanto as empresas quanto os cientistas brasileiros estão muito bem posicionados. Trata-se de um campo fértil para a inovação e o Brasil sempre se destacou em avançar tecnologias que já dominava antes. Somos uma potência em alimentos e temos tudo para sermos uma potência também em alimentos de alta tecnologia, como os produtos plant-based e as carnes cultivadas. Somos hoje o celeiro do mundo, imbatíveis e fundamentais no fornecimento de commodities agrícolas. Como disse um importante executivo do setor, podemos nos tornar rapidamente o supermercado do mundo, fornecendo produtos de alto valor agregado desenvolvidos e fabricados no Brasil.
Reimaginarmos a forma como obtemos proteína para consumo humano é urgente e fundamental. As proteínas alternativas, como chamamos os produtos análogos aos de origem animal obtidos a partir de plantas, por processos de fermentação ou por cultivo de células, é uma das alternativas concretas para ajudarmos o Brasil na sua transição para uma agricultura de baixo carbono. Lado a lado com as proteínas sustentáveis de origem animal, podemos formar uma resposta consistente do nosso país e da nossa economia agrícola ao novo cenário de médio prazo, onde diferentes fontes de obtenção de proteína para consumo humano conviverão. Esse é um mercado “E”, e não um mercado “OU”: há espaço e demanda para atuação de todos.
O papel do GFI é ser um catalisador dessa mudança, estimulando a produção de proteína sustentável para consumo humano através de análogos aos produtos de origem animal. Hora de rever o que foi feito ou deixou de ser feito e alinhar ideias e atitudes para o ano que se inicia.
O mercado de produtos análogos aos produtos de origem animal vem crescendo muito. Nascido em 2019 a partir do movimento de algumas poucas empresas, veio tomando corpo em 2020 e se consolidou em 2021. Diversas empresas de diferentes portes passaram a operar no mercado nacional e hoje tanto o consumidor brasileiro tem acesso a produtos saborosos e seguros em qualquer supermercado quanto ele já é exportado para mais de 25 países, incluindo Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Alemanha, Emirados Árabes, África do Sul, México, Colômbia e tantos outros.
O principal desafio para as empresas em 2022 é caminhar na direção do aumento ao mesmo tempo da escala de produção e do número de ingredientes nacionais utilizados. Isso poderá permitir a produção a um custo cada vez mais baixo, para um público cada vez maior. E permitirá produtos de alcance global cheios de “brasilidade” na sua composição. É hora de consolidar a tendência de que o Brasil passe a utilizar em seus análogos de base vegetal seus próprios feijões e pulses como fonte principal de proteína e ingredientes naturais extraídos de forma sustentável da biodiversidade brasileira por meio da agregação de valor local.
Assim como no mercado de proteína de origem animal para consumo humano, onde o Brasil é indiscutivelmente protagonista no cenário internacional, a tendência ao protagonismo também no mercado de proteínas alternativas parece ser apenas uma questão de tempo. O mapeamento das empresas mostra desde gigantes do mercado de proteína animal que anunciaram ou iniciaram seus negócios em proteínas de origem vegetal até empresas de médio porte que se posicionaram no setor, passando pelas inúmeras startups que já nasceram com foco neste mercado. Sem esquecer de como o Brasil vem se posicionando no promissor território das carnes obtidas por cultivo celular, com os anúncios da JBS e BRF e o surgimento das primeiras startups no segmento, Ambi e Sustineri.
E quando a indústria se move, a pesquisa científica precisa ser chamada a caminhar junto, desenvolvendo a tecnologia necessária para as inovações a serem introduzidas no mercado. A ciência é fundamental para encontrar respostas aos desafios do mercado. O mapeamento das instituições de pesquisa envolvidas com o tema mostra também um engajamento em universidades e institutos de pesquisa de todo o país.
Assistimos a um crescimento exponencial do número de empresas atuantes no setor de proteínas alternativas no Brasil e a uma mobilização acadêmica que pode sustentar um cenário muito favorável de crescimento.
Mas nem tudo são flores nesta cena. E nem esperávamos que fossem. Fechamos 2021 e estamos abrindo 2022 com algumas ações contrárias ao desenvolvimento deste setor no Brasil. Descontentes com o nosso discurso, alguns movimentos e associações se posicionaram na mídia e judicialmente tentando interromper esse desenvolvimento. Estamos prontos para o bom debate, e atentos para as batalhas políticas e judiciais. As descobertas e invenções sempre foram feitas nos laboratórios, mas a inovação (que é levar estas descobertas e invenções ao mercado) sempre passou também pela opinião pública e pelos tribunais.
Repetimos há tempos e continuaremos repetindo que este é um mercado “e” e não um mercado “ou”. Os novos alimentos se somam aos já existentes, ampliando o arco de opções do consumidor brasileiro. Treinado pelos mais de 30 anos do Código de Defesa do Consumidor, o consumidor não é enganado pelos termos usados nestes produtos. O consumidor faz escolhas num processo de decisão informada. Ter que criar termos novos para os novos produtos, isso sim seria desinformá-lo e causar confusão.
As empresas que antes operavam apenas com produtos de origem animal lançam suas linhas de produtos análogos feitos de plantas, além de um número crescente de startups que estão se desenvolvendo a partir da oferta de produtos neste segmento. Dificultar a introdução destes novos produtos do mercado, sob qualquer argumento não científico, é tentar barrar esse progresso. Clamar pelo cumprimento estrito de um marco regulatório desenhado (e muito bem desenhado) em tempos passados é ignorar que a inovação caminha sempre à frente do regulatório e que este precisa se adaptar aos novos tempos. Estabelecer o regramento adequado, dentro de um debate científico isento e democrático, é não apenas a tarefa dos reguladores brasileiros como também uma demanda da indústria, que hoje opera com um grau bastante grande de incerteza no desenvolvimento de seus produtos e uma exigência do consumidor, consciente da necessidade urgente de mudarmos a maneira como obtemos nosso alimento.
Para uma refeição saudável, prefira alimentos frescos e orgânicos. Um hambúrguer vegetal nunca se pretendeu substituto de uma alimentação completa em nutrientes. Mas para uma refeição sustentável, preocupe-se em como seus alimentos foram obtidos e qual a relação de suas cadeias de produção com o planeta. Pessoas tendem a resistir menos à mudança do que a serem mudados. Não estamos sugerindo que você se torne vegano, embora reconheçamos o valor dessa dieta. Estamos trabalhando para o mercado lhe oferecer um outro tipo de carne, leite e laticínios, ovos e pescados, tão saborosos quanto (ou melhores) e com o mesmo preço (ou menor) que os produtos de origem animal. Mas a escolha final é e sempre será do consumidor.
O GFI segue sua luta, no Brasil e no mundo, reimaginando proteínas e sendo um catalisador das mudanças que se fazem necessárias nessa direção. Nosso discurso tem mais semelhanças que diferenças com o discurso dos defensores de processo mais sustentáveis de obtenção de produtos de origem animal. Temos a certeza que caminhamos lado a lado com eles. O rio da história é caudaloso e certamente engolirá as vozes que olham para o futuro pelo retrovisor e se apegam a um modo de fazer as coisas que já não cabe mais no nosso único planeta. Venha conosco.
Texto: Bruna Corsato
Revisão: Camila Lupetti, Cristiana Ambiel, Katherine de Matos e Vinícius Gallon
Pensando em acelerar a inovação na indústria de proteínas alternativas, o GFI realizou a pesquisa “Oportunidades e Desafios na Produção de Produtos Feitos de Plantas Análogos aos Produtos Animais”. Através da contribuição de 21 empresas atuantes nas indústrias do mercado de produtos vegetais no Brasil atualmente, foram identificados os maiores desafios no desenvolvimento de produtos à base de plantas análogos aos produtos animais com a qualidade, preço e as características sensoriais buscadas pelos consumidores.
A partir das informações compartilhadas, o GFI Brasil identificou sete linhas de pesquisa prioritárias para o avanço do mercado de produtos vegetais no Brasil, sendo as principais:
Entretanto, a biodiversidade do Brasil possui uma grande variedade de matérias-primas com potencial para se tornar fonte de proteína para a indústria plant-based, como feijões, arroz, aveia, centeio, milho, amendoim e mais. A pesquisa científica é o elo que falta para transformar esse potencial em realidade. Pesquisas adicionais são necessárias para definir os processos de extração adequados para cada uma das proteínas, além de melhorias das funcionalidades proteicas e nutricionais, o que proporcionará um produto final de maior qualidade e menor custo.
É possível entregar essas características aprimorando as funcionalidades das proteínas, gorduras e carboidratos e também através da ação de certos aditivos. Para chegar na experiência sensorial desejada pelos consumidores, é fundamental ter estudos de desenvolvimento de ingredientes com funcionalidades para dar estrutura aos produtos, uma vez que os agentes de textura disponíveis atualmente possuem desempenho incompatível com as necessidades do mercado.
As proteínas vegetais ainda apresentam forte sabor residual, o que torna mimetizar completamente o produto animal um grande desafio para a indústria. A construção do sabor dos produtos deve ser feita de forma que resulte em maior naturalidade no produto final. Portanto, o desenvolvimento de ingredientes que atendam a essas demandas representa grande oportunidade para as empresas do setor.
Atualmente, os produtos vegetais ainda possuem formulações complexas e com muitos ingredientes com os quais o consumidor não é familiarizado, tornando, muitas vezes, os rótulos difíceis de serem compreendidos e criando barreiras para a compra. Por isso, é necessário simplificar as formulações para ir ao encontro dessa vontade do consumidor. Uma possibilidade de viabilizar esse esforço é realizar pesquisas que desenvolvam alternativas para substituir aditivos, aromas e corantes modificados por ingredientes conhecidos pelo brasileiro.
Dentro do contexto brasileiro, a maioria dos consumidores de produtos feitos de plantas é composta por pessoas que reduzem o consumo de produtos animais, com esse grupo chegando a 49% da população em 2020, de acordo com pesquisa do GFI Brasil..
Por isso, é importante que o produto final atenda à demanda desse grupo e entregue as características de saudabilidade desejadas. Ou seja, produtos que mimetizam o tradicional com valor nutricional equiparado ou superior ao do produto de origem animal. Em um mercado cada vez mais competitivo, a qualidade nutricional pode ser um dos principais diferenciais competitivos. Por isso, é importante que a indústria se dedique a aprimorar características nutricionais como diminuir o teor de gordura e sódio, aumentar o teor de proteína e fibras, etc.
Desenvolver produtos que vão ao encontro dessa combinação de fatores representa tanto uma grande oportunidade quanto um grande desafio para o futuro da indústria. A partir dessas informações, nossos especialistas identificaram as seguintes áreas de oportunidade para o setor de proteínas alternativas:
Textura – proteínas com texturas diferenciadas e melhores funcionalidades, tecnologias adequadas para formação de fibra, retenção da gordura e umidade (suculência e sensação de preenchimento).
Sabor – reduzir sabor residual de proteínas vegetais, maior naturalidade, aromatização natural.
Experiência de consumo – derreter, gratinar (queijos), cor (mudar durante cozimento), textura, sabor e aparência.
Custo – Paridade, similaridade.
Nutrição – equivalência nutricional, redução de sal e gordura saturada.
Clean label – estabilizantes (substitutos para a metilcelulose), aromas, conservantes, ingredientes conhecidos pelo consumidor.
Para acessar a análise dos especialistas do GFI na íntegra, basta clicar aqui. O relatório é gratuito e de acesso aberto a todos, proporcionando a livre circulação de conhecimento e fomentando o crescimento do setor como um todo.
Texto: Victória Gadelha
Revisão: Vinícius Gallon
A meta estabelecida pelo Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura terrestre a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais demanda uma redução drástica das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Nos últimos anos, muitos avanços tornaram os setores de transportes, indústrias e energia mais limpos. No entanto, por mais fundamentais que sejam todos esses esforços, eles ainda são insuficientes para limitarmos o aquecimento do planeta. Isso porque o sistema alimentar global é também um dos principais emissores de GEE mas, diferente dos outros setores, seus impactos foram historicamente mal compreendidos e, só agora, começaram a ser expostos com clareza – e com a seriedade que a situação demanda.
Estudos mostram que, mesmo se todas as emissões de combustíveis fósseis fossem imediatamente zeradas, as emissões do sistema alimentar global por si só tornariam impossível limitar o aquecimento a 1,5°C e ameaçariam, inclusive, um aumento acima de 2°C. Por isso, para cumprir os objetivos do Acordo de Paris e garantir um futuro seguro, é urgente mudar a forma como nós produzimos alimentos e, principalmente, a forma como nós consumimos proteínas.
O sistema alimentar é responsável por 34% das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. A produção de proteína animal, sozinha, gera metade desse valor, que é maior do que as emissões totais (de todos os setores combinados) dos EUA.
Essas emissões vêm de várias fontes, principalmente do desmatamento (para abrir pastagens e plantar os grãos que viram ração dos animais de abate), da produção e do uso de fertilizantes e agroquímicos, da fermentação entérica e do esterco dos ruminantes (que, juntos, são responsáveis por 30% das emissões de metano) e da queima de combustíveis fósseis na cadeia de produção e abastecimento de alimentos. A pecuária (pastagem e produção de grãos para ração) ocupa mais de 70% de todas as terras agrícolas do mundo e 30% da superfície terrestre. Mesmo assim, fornece apenas 17% do suprimento alimentar da humanidade.
Com a população mundial prevista para alcançar 10 bilhões de pessoas em 2050, é esperado que o consumo de carne aumente a ponto de dobrar nos países de renda média. E dobrar a produção desse setor, sem mudar seus métodos, significa dobrar todos os impactos que ele gera – em um mundo com recursos naturais já esgotados.
É por isso que as proteínas alternativas se apresentam como uma solução potente e escalável para uma transição eficaz no sistema alimentar. Novo estudo do The Good Food Institute com o Climate Advisers indica que uma mudança no consumo de proteínas é capaz de fornecer de 14 a 20% da mitigação de emissões que o mundo precisa até 2050 para não ultrapassar o aquecimento de 1,5°C. Além disso, é capaz de acelerar outras soluções naturais ao, por exemplo, liberar milhões de hectares de terras que podem ser destinada para estratégias de conservação, gestão com foco no clima, segurança alimentar, proteção da biodiversidade, etc.
As proteínas alternativas podem ser divididas em dois tipos principais: feitas de plantas (plant-based), que são produtos feitos de vegetais que imitam o sabor, formato e textura das carnes (bovina, suína, de frango, peixe, frutos do mar…), laticínios e derivados; e carne cultivada, fabricada diretamente a partir de células animais, resultando num produto igual ao convencional. A alta eficiência de ambas no uso da terra em relação à carne bovina é, sem dúvidas, uma das suas maiores vantagens, já que precisam de até 99% e 95% menos solo para serem produzidas, respectivamente.
Ao invés de usar terras para cultivar os grãos que alimentam os animais que, por sua vez, são abatidos para nos alimentar – e ocupar mais terras para criar todos esses animais – as colheitas podem ser usadas diretamente para produzir carne à base de plantas. Dessa forma, deixamos de “terceirizar” a ingestão de proteínas através do animal e podemos tirar esse intermediário da equação. Com isso, todo o metano e o óxido nitroso gerados pela digestão e decomposição do estrume dos ruminantes deixa de ser emitido e, como dito anteriormente, as vastas terras poupadas podem ser destinadas para práticas regenerativas e de preservação.
Tanto a carne vegetal quanto a cultivada concentram seu gasto de energia em instalações que podem ter uma pegada de carbono mínima se alimentadas com energia renovável, emitindo pouco ou nenhum GEE. Assim como painéis solares e carros elétricos, as proteínas alternativas precisam ser amplamente consumidas para passarem a assumir um papel de protagonismo na redução global de gases de efeito estufa. Apesar desse momento ainda não ter chegado, as inovações do setor seguem em ritmo impressionante e indicam que, logo, as proteínas alternativas poderão competir em sabor e preço com todo tipo de carne animal.
Os produtos substitutos para carne bovina, suína e de frango já se popularizaram e estão sempre presentes em mercados e hamburguerias como uma opção para vegetarianos e veganos, mas os avanços em relação a alternativas para peixes e frutos do mar também surpreendem e, em termos de impactos ambientais, têm uma relevância importantíssima – que muitas vezes é menosprezada.
Além da pesca predatória agredir os ecossistemas marinhos ao retirar do mar trilhões de animais todos os anos, muitos peixes selvagens (como atum, bacalhau e salmão) já são pescados acima da capacidade máxima e passam a integrar a lista de espécies em extinção. O desenvolvimento de peixes e frutos do mar alternativos pode aliviar a pressão sobre a pesca industrial e os sistemas de aquicultura, que não vão conseguir suprir a lacuna entre oferta e demanda que deve se formar nos próximos anos. Ao mesmo tempo, as proteínas alternativas reduzem em até 91% a poluição dos oceanos (Causada pelo escoamento agrícola) e também poupam todos os outros recursos aquáticos, uma vez que precisam de até 99% menos água para serem produzidas do que a carne animal).
Os ganhos ambientais proporcionados por essa transição no sistema alimentar são inegáveis, mas ela também oferece benefícios cruciais à saúde global: relatório da FAO (braço da ONU para alimentação e agricultura) de 2013 já indicava que 70% das doenças infecciosas surgidas no mundo após a década de 1940 são zoonoses, ou seja, têm origem animal. Ebola, HIV/AIDS, Sars e vários vírus da gripe são algumas das doenças derivadas da crescente interação entre animais silvestres, animais para abate e seres humanos. Mas, diferente do atual, um sistema baseado em proteínas alternativas não tem potencial de desencadear novos surtos ou epidemias porque, simplesmente, não envolve a criação e consumo de animais.
Além disso, a pecuária utiliza mais de 70% de todos os antibióticos existentes no mundo, o que colabora com o aparecimento cada vez maior de superbactérias resistentes a medicamentos – que já matam entre 500 mil e 700 mil pessoas por ano. Como a produção de proteínas alternativas não depende de nenhum antibiótico, seu risco de contribuir para essa ameaça à saúde global também é nulo.
Os relatórios de mercado preveem um aumento constante no consumo de carne cultivada e feita de plantas nas economias desenvolvidas, mas os países de alta renda não são os únicos interessados nesses produtos – tanto que o primeiro centro de pesquisa de carne cultivada no mundo foi criado em Maharashtra, Índia. No entanto, as proteínas alternativas vão ficar limitadas a um nicho de mercado até atingirem uma equivalência entre preço e sabor em relação à carne animal.
Apesar de ser questão de tempo, devido a urgência dessa transição, muito pode ser feito a nível global para acelerá-la. O THe Good Food Institute e o Climate Advisers acreditam que as prioridades internacionais devem ser, nesse momento inicial, financiar a pesquisa de acesso aberto, incentivar a P&D do setor privado e apoiar a infraestrutura e fabricação de carne cultivada e à base de plantas.
E como líder mundial em inovação de proteínas alternativas, os Estados Unidos deveriam incentivar a cooperação global desse setor. Muitos países teriam interesses (ambientais e comerciais) para explorar uma diplomacia na transição do sistema alimentar. Entre eles, Noruega, Alemanha, Reino Unido, Holanda e Dinamarca, nações comprometidas com boas práticas climáticas, Israel e Cingapura, líderes em tecnologia de carne cultivada, e grandes fornecedores de proteína animal, como o Brasil, que podem aproveitar todo o know-how do setor para se tornarem líderes também no mercado de proteínas alternativas.
Os governos que entenderem a importância dessa transição e investirem, agora, na pesquisa, inovação e comercialização de carne cultivada e à base de plantas, vão se tornar os maiores na redução de emissões agrícolas, melhoria da saúde humana, proteção da biodiversidade e aumento da segurança alimentar, colaborando para a garantia de um futuro justo e sustentável.
O Fórum Brasil Bioeconomia 2021, organizado pela Associação Brasileira de Bioinovação (ABBI), já tem data definida: 9 de dezembro. Com o tema “Bioeconomia: Da Vocação à Realidade”, o evento, que está em sua 3ª edição, visa valorizar iniciativas que promovem a bioeconomia no país, tanto nas esferas públicas quanto privadas.
Serão esperados mais de 300 representantes de alto nível da indústria, governo, imprensa, investidores, academia, ONGs, startups e sociedade civil para construir massa crítica, compromisso e ações que impulsionarão o Brasil para um novo modelo bioeconômico e bioindustrial.
O Fórum contará com a presença de Paulo Ganime, Deputado Federal e Presidente da Frente Parlamentar da Bioeconomia; Maurício Adade, CEO América Latina da DSM e Presidente do Conselho Diretor da ABBI; Ismael Nobre, Diretor Executivo do Instituto Amazônia 4.0; André Valente, Gerente de Sustentabilidade da Raízen;; Gustavo Guadagnini, Managing Director do The Good Food Institute Brasil; Gustavo Sergi, Diretor de Químicos Renováveis e Especialidades da Braskem; Kelly Seligman, Gerente de Assuntos Científicos e Regulatórios da Amyris para a América Latina e Brasil; William Yassumoto, Presidente da Novozymes para a América Latina e Thiago Falda, Presidente Executivo da ABBI. A apresentação do evento e a moderação dos debates estarão nas mãos de Luís Artur Nogueira, Comentarista Econômico e Apresentador na TV Jovem Pan News.
O evento contará com dois painéis com temas estratégicos para o desenvolvimento da bioeconomia avançada no Brasil:
A bioinovação (inovação baseada em recursos biológicos e renováveis) é um dos principais pilares para a redução das emissões de gases de efeito estufa e contribuição da descarbonização de várias cadeias produtivas. Importante destacar a importância da regulamentação do mercado de carbono no Brasil para impulsionar o desenvolvimento de tecnologias voltadas à sustentabilidade, além da geração de empregos e entrada de capital estrangeiro no país.
A transformação econômica mundial está comprometida com o desenvolvimento sustentável e o Brasil possui diferenciais para se tornar um grande protagonista na bioeconomia avançada. A bioeconomia será destaque nas relações de comércio mundial nos próximos anos e o país precisa apresentar um ambiente estimulante ao investimento em inovação. É preciso então adotar uma estratégia de longo prazo considerando nossos diferenciais como agricultura sustentável, biomassa abundante e barata, alta experiência em biotecnologia na produção de etanol e a maior biodiversidade do planeta.
Com o patrocínio das empresas Amyris, BASF, Braskem, DSM, GFI Brasil, Novozymes e Raízen, o evento tem como objetivo discutir como converter as vocações do Brasil para a bioeconomia em realidade.
Maurício Adade, presidente América Latina da DSM e presidente do Conselho Diretor da ABBI, destaca que: “A atuação da ABBI é fundamental e extremamente necessária, pois une e organiza centenas de empresas brasileiras que estão voltadas ao bem maior de, através da inovação e biociência, gerar recursos e soluções biológicos e renováveis que auxiliam a sustentabilidade de todo o planeta. O Brasil tem um papel ambiental muito relevante e potencial para fazer a diferença nas metas climáticas que foram atualizadas na COP26. Mas, é claro que o governo não consegue fazer isso sozinho, precisa do apoio tecnológico das empresas. É justamente nesta etapa que a ABBI atua estrategicamente, na facilitação das relações público-privadas.”
“A biotecnologia auxilia em todos os setores da indústria, desde biocombustíveis, consumo, agronegócios, enfim, em tudo o que a sociedade faz uso. É todo um trabalho voltado para melhorar a produção, minimizar os impactos e ajudar os produtores a fazer mais com a utilização de menos recursos naturais, como redução de consumo de água, energia, aditivos e, assim, fortalecer o desenvolvimento sustentável. As empresas são peças fundamentais na economia e no meio ambiente, por isso, as decisões de seus negócios impactam muito no âmbito social. Esperamos que a edição 2021 do Fórum & Prêmio Brasil Bioeconomia ressalte e reforce a temática, mostrando como é possível movimentar a economia de maneira saudável, garantindo o fluxo econômico e gerando empregos, e que todo esse conjunto são formas de garantir a sustentabilidade”, comenta William Matsumoto, presidente da Novozymes para América Latina.
Durante o Fórum Brasil Bioeconomia acontece o Prêmio Brasil Bioeconomia 2021, que reconhece pesquisadores, empreendedores e organizações cujas soluções para as mais importantes questões do Brasil e do mundo envolvem a inovação como meio para reforçar um pacto saudável entre a natureza e a sociedade.
Texto de Elliot Swartz, lead scientist (GFI) com tradução de Bruna Scorsatto
É o começo de 2016 e eu sou um candidato a Ph.D na UCLA investigando como transformar células-tronco de seres humanos em músculo esquelético e tecidos neuronais para estudar doenças neuromusculares como ALS. Foi aqui que eu li pela primeira vez sobre Memphis Meats (que agora é UPSIDE Foods), a primeira empresa a completar uma rodada de investimento para cultivar carne a partir de células tronco de animais.
“Interessante”, pensei comigo mesmo, “mas isso não vai acontecer tão cedo. É muito caro.”
Eu sabia do que eu estava falando. Eu gastava mais de $1.000 em meio para cultura de células e reagentes por mês, usando métodos parecidos com aqueles necessários para cultivar carne.
Mas a semente estava plantada. E se fosse possível cultivar carne em escala a um custo que a fizesse um substituto viável à carne animal tradicional? Carne sem o animal. Quão difícil seria?
À medida que eu acompanhava a nascente indústria de carne cultivada, eu comecei a prestar consultoria para uma startup que queria descobrir soluções para doenças neurodegenerativas que até então não tinham tratamento, como Alzheimer e Parkinson. Descobrir novas drogas é extremamente desafiador. Em muitos casos, nós não sabemos a causa raiz da doença, o que poderia ser um bom alvo terapêutico ou mesmo o melhor método de aplicação da nova droga no alvo hipotético. Normalmente existe uma caixa-preta biológica cheia de incertezas e desconhecidos no meio do caminho. Apesar disso, a sociedade despeja bilhões de dólares nessa e em muitas outras caixas todos os anos, na esperança de fazê-las menos opacas.
Mas e a carne cultivada? Décadas de ciência anterior nos deram um entendimento de como transformar células-tronco em músculo, gordura e tecidos conectivos necessários para fazer carne. Claro, pode ser que existam formas mais eficientes de fazer isso, mas a caixa preta não revelou. Aparentemente, metade da batalha já estava ganha. Era apenas o caso de aumentar a escala e diminuir os custos, e esforços para ganhar essa outra metade da batalha já tinha começado. O timing era certo.
Então eu mergulhei de cabeça. E não fui só eu.
Hoje, existem mais de 80 empresas no mundo todo buscando criar produtos de carne cultivada prontos para consumo e dezenas mais surgiram para fornecer linhas de células, meios de cultura, scaffolds, bioreatores e outros componentes necessários para dar suporte ao crescimento da indústria.
O ritmo dessa transição está acelerando. Eu e meus colegas no GFI somos contatados quase diariamente por empreendedores em estágio inicial, estudantes universitários, investidores ou representantes da indústria de alimentos buscando entender melhor os desafios da indústria de carne cultivada e como eles podem se envolver na busca por soluções (confira algumas ideias no nosso Banco de Dados de Soluções)
Em 2015, se você dissesse a biólogos trabalhando com células-tronco que consumidores estariam comendo carne cultivada aprovada pelo governo em 2021, eles dariam risada de você. Mas em seis anos, carne cultivada foi de ficção científica à realidade – dependendo para quem você pergunta (mais sobre isso depois).
No GFI, nós sonhamos com um mundo onde as proteínas alternativas de plantas, cultivo celular ou fermentação não são mais uma alternativa. E nós estamos desenhando um roteiro para chegar lá.
Um dos melhores métodos para traçar esse roteiro é através de análises técnico econômicas (TEAs na sigla em inglês). Como dito anteriormente, TEAs são ferramentas fundamentais para exploração e priorização de áreas que justificam pesquisas adicionais, revelando os gargalos técnicos e econômicos dentro de uma determina indústria ou processo.
Até o momento, três TEAs foram publicadas sobre a produção hipotética de carne cultivada em escala comercial (Vergeer, 2021; Humbird, 2021; e Risner, 2021) e sabemos de pelo menos mais duas próximas de serem publicadas. Nós encorajamos ativamente a realização de TEAs adicionais para trazer novas perspectivas que podem ser usadas para iluminar caminhos alternativos no mapa tecnológico ao longo do tempo.
Embora adotem abordagens diferentes e dependam de diferentes suposições e fontes de dados de entrada, as três TEAs publicados são, na verdade, bastante semelhantes no alto nível de suas descobertas. Coletivamente, elas sugerem que os custos de produção de carne cultivada são altos devido ao custo atual dos meios de cultura de células, o custo atual de biorreatores (stirred-tank) em grande escala que foram usados nos exercícios de modelagem e os custos previstos de infraestrutura adicional necessária para produzir quantidades significativas de carne cultivada.
Essas TEAs sugerem que, com base em nosso conhecimento atual, reduzir os custos do meio de cultura e do biorreator, além de melhorar a produtividade do processo são essenciais para obter faixas de custo competitivo com algumas carnes convencionais. A indústria de carne cultivada provavelmente também exigirá abordagens inovadoras tanto do lado comercial quanto do lado tecnológico, incluindo opções de financiamento flexíveis e desenvolvimento de nova tecnologia para se aventurar em faixas de custo verdadeiramente competitivas com a maioria das carnes convencionais (para considerações adicionais, incluindo a importância de produtos híbridos na realização desse objetivo, veja essa thread no Twitter).
A empreitada da carne cultivada é representada por Sam e Frodo deixando o Condado para viajar para Mordor (ou, neste caso, criar carne cultivada que compete em preço, sabor e conveniência). A indústria da carne cultivada acaba de deixar o Condado. O mapa rudimentar da Terra Média que eles estão seguindo, informado pelos TEAs atuais, mostra as maiores montanhas (meios de cultura de células e custos de biorreator), florestas (instalações de qualidade alimentar, incerteza na tecnologia de aumento de escala) e rios (regulamentos, processo de produtividade aumentado) ao longo do caminho, mas não revela os melhores caminhos ou tecnologias para nos guiar sobre, através ou em torno deles. Os detalhes completos da jornada pela Terra Média do início ao fim ainda são obscuros.
O mapa revela uma jornada intimidante – e para os pessimistas, uma jornada que pode parecer intransponível ou incerta demais. Mas os otimistas entendem que a jornada apenas começou. O mapa fica mais claro com o tempo e existe ajuda ao longo do caminho. Dadas as circunstâncias e o que está em jogo, a jornada da carne cultivada é uma que vale a pena. Como Sam e Frodo, só precisamos colocar um pé na frente do outro. Temos que ser orientados para a ação, aprender através de tentativa e erro e seguir o caminho que se mostra mais promissor. Felizmente, os otimistas têm um viés para a ação, enquanto os pessimistas têm um histórico humilde de não conseguir imaginar novos paradigmas tecnológicos.
Como cientista-chefe de carne cultivada na equipe de Ciência e Tecnologia do GFI, meu papel é transformar o obscuro mapa da Terra Média em Google Maps que mostra vários caminhos e linhas do tempo enquanto prevê o trânsito ao longo do caminho.
No GFI, começamos a dissecar esses direcionadores de custo da carne cultivada em muito mais detalhes, e o primeiro foi o meio de cultura de células porque é o principal impulsionador dos custos atuais de produção de carne cultivada – a primeira montanha a atravessar.
Em 2019, a vice-presidente de Ciência e Tecnologia do GFI, Dra. Liz Specht, publicou um relatório que destacou os geradores de custos em um modelo de meio de cultura de células. Ela explicou como os custos de meio poderiam ser reduzidos em 99% ou mais com a conversão para uma formulação de grau alimentício e fazendo suposições modestas de escala para os componentes de custo mais alto. A análise passou a servir de base para as considerações feitas em todas as TEAs publicadas até o momento que, conjuntamente, mostram que os custos de meio serão impulsionados principalmente por fatores de crescimento e, secundariamente, por aminoácidos. A indústria de carne cultivada precisará usar esses componentes de forma eficiente e produzi-los em níveis de purificação de grau alimentício ou mesmo de ração para atingir custos adequados para a produção de carne cultivada em escala comercial.
Para ajudar a entender onde a indústria está ao longo dessa trajetória, publicamos uma pesquisa geral no início deste ano, mostrando que muitas empresas de carne cultivada já reduziram drasticamente os custos de meio, um feito também alcançado independentemente pelo grupo do Dr. Paul Burridge na Northwestern University. Empresas também estão realizando experimentos com aminoácidos e outros componentes do meio de cultivo em suas versões de grau alimentício para humanos (food grade) e para animais (feed grade). Embora mais dados sejam necessários, os resultados iniciais sugerem que a abordagem é viável.
Uma próxima análise visa elucidar caminhos para a redução de custos dos fatores de crescimento. Também estamos contratando um pesquisador para ajudar a mapear nossa compreensão atual do metabolismo das células animais com o objetivo de identificar as fontes de aminoácidos mais adequadas para a produção de carne cultivada nas quantidades que a indústria exigirá conforme ela se expande.
Mas nosso foco se estende além da primeira montanha. Estamos olhando para o mapa completo, localizando os desafios ao longo de toda a cadeia de valor da carne cultivada. Para acelerar o progresso em direção ao “santo graal” da indústria – a produção de cortes inteiros de carne – destinamos todo o nosso edital de pesquisa em 2021 a essa meta. O GFI concedeu quase U$ 3 milhões a treze equipes de pesquisa para começar a trabalhar na criação de cortes inteiros de carne cultivada. Escrevemos um extenso artigo de revisão sobre trecnologias de scaffolding na revista Advanced Science (imprensa), financiamos uma avaliação do ciclo de vida que mapeia os principais motores ambientais de produção, intensificamos a expansão do acesso a linhas de células e construímos bancos de dados abertos, cursos e comunidades ao longo do caminho.
As futuras análises planejadas para 2022 permitirão uma melhor compreensão dos requisitos de infraestrutura para a produção de carne cultivada em escala comercial e examinarão diferentes métodos de cultivo de células (todas as TEAs até agora examinaram apenas uma maneira de fazê-lo).
Cada uma dessas análises serve como um guia de orientação crucial para cientistas, empresas e outras partes interessadas ao longo da jornada da carne cultivada. Mas sabemos que não podemos construir a versão completa do roteiro “Google Maps” sozinhos. Precisaremos construir um ecossistema inteiro, criando um efeito cascata para transformar as centenas de mentes talentosas trabalhando em soluções em números que cheguem aos milhares – e eventualmente centenas de milhares.
A pesquisa que publicamos no início deste ano mostra que aproximadamente US$ 12 milhões em editais de pesquisa pré-competitiva foram concedidos para pesquisa de carne cultivada entre 2005 e o início de 2021. Em comparação, os gastos públicos em P&D para energia renovável chegaram a US$ 5,5 bilhões em só 2018 – uma diferença de 450 vezes.
Como resultado, a pesquisa acadêmica em carnes cultivadas está atrasada. Startups do setor levantaram mais de US$ 1 bilhão desde 2015 e várias estão caminhando em direção à comercialização em pequena escala. Embora mais da metade desse total tenha sido gerado em 2021 e ainda não tenha sido realmente implantado, os totais comparativos significam que a grande maioria da pesquisa de carne cultivada até o momento foi realizada a portas fechadas. Isso obscurece o conhecimento sobre preços e práticas, dificultando a avaliação do progresso passado, presente e futuro. Mas não estamos culpando as empresas por operar dentro das estruturas de incentivos que recebem.
Em vez disso, as equipes do GFI (incluindo nossas afiliadas na Índia, Israel, Brasil, APAC e Europa) trabalharam incansavelmente para aumentar a alocação de financiamento público para carnes cultivadas e outras proteínas alternativas. Uma parte integral deste trabalho envolveu o estabelecimento do Edital de Pesquisa do GFI em 2018. Graças a um grupo de doadores generosos, o programa concedeu mais de US$ 7 milhões em pesquisa de acesso aberto sobre carne cultivada. Esses fundos proporcionaram a pesquisadores pioneiros uma oportunidade de demonstrar o valor da pesquisa em carne cultivada, que, consequentemente, começou a abrir novas fontes de financiamento do governo necessárias para realmente construir um ecossistema de pesquisa e treinamento.
Em 2020, a National Science Foundation concedeu aos pesquisadores da UC Davis uma bolsa de US$ 3,55 milhões para a pesquisa de carnes cultivadas. Quase um ano depois, o Departamento da Agricultura dos Estados Unidos conceceu um financiamento de US$ 10 milhões para estabelecer o Instituto Nacional de Agricultura Celular na Universidade Tufts. Em 2020, o governo de Cingapura destinou US$ 144 milhões para seu programa de P&D Food Story, com parte desses fundos dedicados à pesquisa de carnes cultivadas. Em 2021, o Instituto de Tecnologia de Bioprocessamento A*STAR anunciou a criação do Centro de Inovação para Atividades Bancárias Sustentáveis e Produção de Carnes Cultivadas (CRISP Meats). Projeto de pesquisa de vários milhões de dólares também estão em andamento no Japão, com apoio na China também se tornando disponível. Ao longo do caminho, os pesquisadores financiados pelo edital de pesquisa do GFI também criaram empresas, formaram consórcios de pesquisa, aconselharam grupos de alunos no campus e prepararam um número crescente de cientistas para construírem carreiras na área.
Esses financiamentos públicos servem como um sinal importante de que a carne cultivada está se tornando uma disciplina de pesquisa legítima. Um ciclo de feedback positivo e fortalecedor está começando a surgir, o que levará a mais pesquisadores interdisciplinares em carne cultivada. Esses pesquisadores então enviarão mais inscrições a mais agências de financiamento, liberando mais bolsas para financiar mais pesquisas e treinar mais cientistas e engenheiros.
Pode parecer contraintuitivo, mas uma grande parte da razão pela qual estou otimista em superar os desafios que a indústria da carne cultivada enfrenta é por causa do nascimento de seu ecossistema de pesquisa. Estamos longe de esgotar a criatividade dos pesquisadores que vão entrar no campo. Além disso, a maior parte do capital privado levantado até agora ainda não foi colocado em operação. Conforme observado acima, menos da metade do investimento privado no campo foi alocado antes de 2021, o que significa que as startups ainda estão contratando com fervor os pesquisadores para executar os planos de P&D financiados por esses investimentos.
O que acontece quando o nível atual de cientistas e engenheiros talentosos trabalhando com carne cultivada aumenta em 1000 vezes no mundo todo? Esse movimento está apenas começando.
É fácil esquecer, mas o motivo de estarmos aqui hoje é em grande parte porque os investidores otimistas começaram – e continuam – a fazer apostas há seis anos.
Essas apostas que somam mais de US$ 1 bilhão até o momento fizeram mais do que apenas financiar cerca de sessenta startups promissoras – elas iniciaram uma indústria e incentivaram a ajuda adicional a vir de várias direções. Existem agora dezenas de startups auxiliares que visam atender a indústria B2B. Reguladores globais estão estabelecendo caminhos regulatórios. Empresas multinacionais de alimentos, ingredientes e produtos químicos estão investindo e firmando parcerias. Os legisladores estão ouvindo e aprendendo, e o entusiasmo do público em geral está crescendo (por exemplo, veja esta comunidade do Reddit com mais de 60.000 entusiastas).
Mas há motivos para acreditar que ainda mais ajuda está a caminho. Embora a tecnologia sendo implementada atualmente na indústria seja herança do setor biofarmacêutico, esse legado tecnológico não é adequado para o propósito de criar produtos de carne cultivada. As células usadas para criar medicamentos e vacinas biológicas nunca foram o produto, elas estavam simplesmente servindo como plataformas de produção.
Entretanto, no campo da medicina regenerativa as células são o produto. E os esforços globais para criar uma indústria de manufatura avançada para células, tecidos e órgãos para a medicina humana estão agora bem encaminhados. Embora seus regimes de preços e escalas finais sejam diferentes, muitos dos principais desafios que a indústria da medicina regenerativa enfrenta são compartilhados com a carne cultivada.
Os esforços para enfrentar desafios compartilhados não ocorrerão no vácuo. Sucessos, fracassos e tecnologias criadas para os campos de medicina regenerativa e carne cultivada serão cada vez mais compartilhados por meio de publicações, desenvolvimento de propriedade intelectual e discussões públicas nos próximos anos.
Essas indústrias estão cada vez mais aproveitando as oportunidades de colaboração e compartilhamento de conhecimento – por exemplo, o GFI entrou para o Advanced Regenerative Manufacturing Institute no início deste ano para explorar essas sinergias.
Da mesma forma, melhorias contínuas em biologia sintética, bioinformática, inteligência artificial, automação e outros setores de ciências da vida podem encontrar aplicações igualmente importantes nesses campos.
A aprovação do produto de frango cultivado da Eat Just em Cingapura foi um marco monumental na jornada da carne cultivada. Mas tire o zoom e você verá que a indústria de carne cultivada representa 0,00% do mercado – sim, no cenário global, a indústria é menos do que um erro de arredondamento. E esse produto aprovado? Está sendo vendido com prejuízo por apenas dois restaurantes em um único país.
De acordo com a McKinsey, o mercado global de carnes e frutos do mar deve atingir 531 milhões de toneladas até 2030 e continuar a crescer no futuro previsível. Isso significa que milhões de toneladas de células animais cultivadas precisarão ser produzidas para capturar apenas uma fração de um por cento do mercado em crescimento, exigindo algo entre 11 a 22 vezes a capacidade volumétrica atual da indústria farmacêutica global. É uma tarefa monumental, visto que a indústria está atualmente produzindo carne cultivada na escala do quilograma.
Existem desafios reais associados à redução de custos e ao alcance das escalas necessárias para produzir quantidades significativas de carne cultivada. Existem incertezas adicionais no cenário regulatório, a probabilidade de os consumidores adotá-la e se a carne cultivada realmente substituirá o consumo de carne convencional. Para muitos, essas razões explicam porque a carne cultivada ainda permanece no reino da ficção científica, e não na realidade.
Esses fatores, juntamente com a urgência da crise climática, podem tornar mais fácil se manter pessimista e talvez pensar em gastar dinheiro e tempo em outro lugar. Mas, a longo prazo, o futuro é decidido por otimistas. E um vislumbre do futuro da indústria de carnes pode ser obtido a partir da atual transição que está ocorrendo no setor de energia.
A Lei de Amara afirma que tendemos a superestimar o efeito de uma tecnologia no curto prazo e subestimar seus efeitos no longo prazo. As tecnologias costumam passar por períodos de expectativas infladas, um vale de desilusão e, eventualmente, um processo gradual que leva a sua difusão pela sociedade. De aviões a blockchains, essas tendências qualitativas tendem a se manter, mas quantificar a linha do tempo e a taxa de adoção de tecnologia é difícil e depende de muitas variáveis. Olhar para outros setores fornece uma visão sobre como essas variáveis influenciam previsões.
Muitas indústrias experimentaram trajetórias semelhantes, mas para ilustrar alguns paralelos importantes, a indústria solar parece apropriada. Como Max Roser, ou Our World in Data, descreve, em seus primeiros dias, com preços exorbitantes, os módulos solares fotovoltaicos foram evitados, mas acabaram ganhando espaço ao atender a indústria de satélites. À medida que mais módulos fotovoltaicos eram produzidos para espaçonaves, seus custos diminuíam, permitindo o acesso em mercados muito maiores e mais convencionais na Terra. Isso criou um ciclo de feedback positivo que resultou em um declínio de 99,6% nos custos da energia solar fotovoltaica desde 1976, com declínios concomitantes nos preços da energia solar.
Os cronogramas reais dessas quedas de preço foram contra todas as previsões. Acontece que, para muitos setores, cada duplicação da capacidade de fabricação resulta em um declínio previsível nos custos, conhecido como curva de experiência. Mas essas taxas são difíceis de prever. Para a energia solar é de 20%, para energia eólica on shore é de 23% e para a energia eólica off shore é perto de 10%.
Então, o que pode ser dito sobre a linha do tempo e as curvas de experiência de carne cultivada? Embora alguns tenham tentado ilustrar quedas nos preços do produto final com base em números citados na mídia (por exemplo, aqui e aqui), ainda é muito cedo para fazer previsões. Os dados são muito escassos e as escalas muito pequenas par aproximar as curvas de experiência.
No entanto, como a indústria solar, a indústria de carne cultivada tem uma oportunidade crucial de ganhar fôlego para escala através dos nichos de carne premium e especiais, e como um ingrediente para melhorar os aspectos sensoriais de produtos à base de plantas. Esses mercados não são pequenos. Por exemplo, o mercado de carnes premium e especiais pode ser de aproximadamente seis milhões de toneladas anuais. Se estimarmos a capacidade volumétrica da indústria de carnes cultivadas em 2022 em aproximadamente 500 toneladas, serão necessárias treze duplicações para satisfazer a demanda por carnes premium e especiais. É aqui que o fabricantes de carne cultivada aperfeiçoarão seu ofício nos próximos anos e curvas de experiência mais confiáveis começarão a surgir.
Embora os dados mencionados anteriormente tenham apresentado reduções significativas de custo em meios de cultura de células que estão bem encaminhados, há mais incerteza para os custos dos biorreatores. E como os módulos fotovoltaicos solares há três décadas, o aumento da escala necessária da fabricação de biorreatores pode desbloquear curvas de experiência que fazem as suposições usadas nas TEAs de hoje parecerem altamente imprecisas.
Nos últimos cinco anos, a energia solar reduziu todas as formas de energia de combustível fóssil na maioria das regiões e espera-se que seus preços continuem caindo. Em 2019, a energia solar respondia por aproximadamente por um cento da energia global e dois por cento da eletricidade global.
Seria um descuido não mencionar que chegar a apenas 2% do uso global de eletricidade exigiu investimentos públicos e privados maciços, incentivos fiscais para infraestrutura, subsídios para estimular a adoção precoce e muita educação do consumidor. A mesma escala de investimento e esforço provavelmente será necessária para a carne cultivada alcançar penetração de mercado semelhante.
Atualmente, são poucos os que duvidam de que a energia solar será uma parte significativa de nosso futuro descarbonizado ou que esses investimentos não valem a pena. Mas a energia solar por si só não é uma panaceia para nossa dependência de combustíveis fósseis. Pesquisa, manufatura e políticas bem estruturadas precisam ser replicadas em fontes de energia sustentáveis. Solar, eólica, hidroelétrica, geotérmica e nuclear juntas devem compor nossa matriz energética futura, e devem fazê-lo no contexto de engenharia mais inteligente e mudanças de consumo que melhorem a eficiência energética geral.
Da mesma forma, a carne cultivada por si só não é uma panaceia para nossa dependência da produção de carne animal industrializada (e nunca foi). Carne vegetal, alimentos derivados da fermentação, carne cultivada, uma mudança abrangente em direção a dietas ricas em vegetais e outras soluções de produção e consumo de alimentos com eficiência de recursos são elementos importantes de uma estratégia holística para reduzir a pegada ambiental de nosso sistema alimentar global.
Nos últimos meses, o número de políticas governamentais locais e nacionais para eliminar os veículos com motor de combustão interna (ICE) aumentou drasticamente. Mas seria difícil creditar essas políticas apenas à visão de políticos virtuosos e alinhados à missão. Em vez disso, o que está por trás da motivação deles é a longa e árdua estrada da Tesla. A Tesla foi pioneira na adoção de veículos elétricos e tornou-se mais valiosa do que todas as outras montadoras líderes combinadas e, ao fazer isso, forçou a mão de fabricantes de automóveis e políticos a adotar veículos elétricos.
Devemos dar crédito à lista crescente de cidades e nações liderando o caminho, mas essas políticas também parecem atrasadas. Conforme afirma Ramez Naam, é como se todo novo projeto de lei que visa habilitar tecnologias climáticas como veículos elétricos ou solares já é inadequado dada a urgência das mudanças climáticas.
Apesar disso, cada passo político na direção certa permite que essas tecnologias cresçam mais, diminuam os custos e aumentem a adoção do consumidor, o que leva a políticas mais ambiciosas e fortalece esse ciclo positivo.
No contexto do consumo de carne, alguns defendem que os esforços deveriam focar nas ações políticas populares ou em persuadir os consumidores a mudar as dietas – por que tentar buscar a carne cultivada? Mas as lições das indústrias de veículos solares e elétricos demonstram que na raiz da mudança social frequentemente está uma nova tecnologia que representa uma ameaça legítima ao mercado estabelecido e uma alternativa atraente para os consumidores. Sem essa fundação, a persuasão e os esforços na base encontrarão uma forte resistência do consumidor e uma escalada política íngreme.
É aí que entram as proteínas alternativas
Como a Tesla com veículos elétricos, empresas como Impossible Foods e Beyond Meat demonstraram que os consumidores estão dispostos a fazer uma troca (pelo menos parcialmente) da carne convencional se uma alternativa viável for apresentada. Esta demonstração catalisou uma enxurrada de novas startups usando tecnologias baseadas em plantas, fermentação e cultivo de células para criar carne sem o animal (coletivamente, a indústria de proteína alternativa).
A indústria de proteína alternativa já começou a surgir como uma oportunidade de mercado em crescimento, com níveis crescentes de demanda do consumidor. Apesar dos produtos vegetais existentes ainda serem vendidos com preço premium e a maioria dos produtos derivados de fermentação e cultivados ainda estarem em desenvolvimento, a indústria de carne estabelecida já adotou esta nova categoria lançando seus próprios produtos alternativos de carne ou investindo em empresas de proteínas alternativas.
O progresso da indústria de proteínas alternativas até agora tem sido financiado predominantemente por capital privado e trabalho árduo em um pequeno número de empresas, ao invés de apoio ao investimento público. Para cada categoria alternativa de proteína competir em preço, sabor e conveniência (o que se resume à acessibilidade e, em última análise, escala) com a carne convencional, pode ser necessário apoio público significativo na mesma medida demonstrada em outras indústrias.
Os primeiros sinais apontam para um ciclo de feedback técnico-político que está agora em movimento favorável à indústria de proteínas alternativas, semelhante ao que levou as tecnologias de veículos solares e elétricos aos seus pontos de inflexão.
Esta é uma aposta que vale a pena.
O status quo da indústria de agricultura animal convencional traz um enorme risco existencial em termos de mudança climática, degradação ambiental, risco de pandemia e resistência a antibióticos. Os custos futuros de cada uma dessas ameaças totalizarão trilhões de dólares e muitas vidas humanas e animais. Qualquer tecnologia que tenha uma chance de mitigar seriamente essas ameaças deve ser desenvolvida.
A carne cultivada é uma peça importante no conjunto de tecnologias de proteína alternativa que tem chance de fazer exatamente isso. Os desafios estão apenas começando a ser vistos com clareza e os caminhos potenciais para o sucesso estão apenas começando a ser testados. Um valor comparativamente pequeno de investimento trouxe carne cultivada para o mercado em seis anos, e a maior parte desse investimento ainda não foi feito.
Quando diminuímos o zoom e temos uma visão panorâmica da jornada alimentar global, é importante reconhecer os caminhos que já trilhamos e que nos trouxeram aqui e agora. Está claro que esses mesmos caminhos e escolhas não são mais viáveis se quisermos alimentar 10 bilhões de pessoas, alcançar uma economia de emissões neutras ou negativas e liberar terras e águas suficientes para recuperação e restauração em escala planetária. Com tudo o que está em jogo, a busca para reimaginar a agricultura moderna é uma aposta que vale a pena.
Imagem do cabeçalho cortesia da Upside Foods.
Com o objetivo de alavancar o desenvolvimento do mercado de proteína cultivada, o The Good Food Institute Brasil (GFI Brasil) assessorou a JBS na sua entrada neste segmento. O GFI Brasil ofereceu apoio estratégico, tecnológico, regulatório e conexões com cientistas e startups para a companhia, que irá destinar US$ 100 milhões nesta nova frente, consolidando um trabalho de análise mercadológica iniciado há três anos.
“Esse é um dos maiores fatos que já ocorreram nesse setor. O investimento é de longe o maior já feito nessa área por uma empresa tradicional de carnes, e um dos maiores mesmo dentre as startups, que já captam recursos há anos. Com esse movimento, a JBS mostra que está disposta a investir pesado para chegar na liderança da produção de carne cultivada e imediatamente muda o cenário competitivo global. Cada vez mais temos uma certeza: o futuro da produção de alimentos com base tecnológica terá, com certeza, protagonismo brasileiro”, afirma Raquel Casselli, gerente de engajamento corporativo do GFI Brasil
Com esse recurso, a JBS, líder global em proteínas e segunda maior empresa de alimentos do mundo, firmou acordo para aquisição do controle da empresa espanhola BioTech Foods, prevendo o investimento na construção de uma nova unidade fabril na Espanha para dar escala à produção. Além da aquisição, a JBS também anuncia a implantação do primeiro Centro de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) em Biotecnologia e Proteína Cultivada do Brasil.
Fundada em 2017, a BioTech Foods é uma das líderes no desenvolvimento de biotecnologia para a produção de proteína cultivada, contando com o apoio do governo espanhol e da União Europeia. A empresa opera uma planta-piloto na cidade de San Sebastián e tem a expectativa de alcançar a produção comercial em meados de 2024, com a construção dessa nova unidade fabril. O investimento na nova instalação é estimado em US$ 41 milhões.
Pelos termos da transação, a JBS se torna a acionista majoritária da BioTech Foods. A operação possibilita que as duas empresas unam forças para acelerar o desenvolvimento do mercado de proteína cultivada. A companhia brasileira passa a ter acesso à tecnologia e à produção de proteínas da BioTech Foods, que, por sua vez, terá à disposição a capacidade de processamento industrial, a estrutura de marketing, know-how para o desenvolvimento de produtos e os canais de venda da JBS para colocar o novo produto no mercado.
“Esta aquisição reforça nossa estratégia de inovação, desde como desenvolvemos novos produtos até como comercializamos, para atender à crescente demanda global por alimentos. Unindo o conhecimento tecnológico com nossa capacidade de produção, seremos capazes de acelerar o desenvolvimento do mercado de proteína cultivada”, afirma Gilberto Tomazoni, CEO Global da JBS. A aquisição da BioTech Foods ainda está sujeita à confirmação da autoridade de investimento estrangeiro na Espanha, entre outras condições usuais a esse tipo de operação.
Quando estiver em fase comercial, a proteína cultivada chegará inicialmente aos consumidores na forma de alimentos preparados, como hambúrgueres, embutidos, almôndegas, entre outros. A tecnologia tem potencial não apenas para a produção de proteína bovina, mas também para a de frangos, suínos e pescados.
O movimento na Europa é complementado pelo Centro de Pesquisa em Proteína Cultivada no Brasil. Previsto para ser inaugurado em 2022, o centro incluirá na segunda etapa uma planta que irá ocupar uma área de 10 mil metros quadrados. Liderado pelos doutores Luismar Marques Porto e Fernanda Vieira Berti, a iniciativa contará com cerca de 25 pesquisadores e vai trabalhar no desenvolvimento de tecnologias de ponta para a indústria de alimentos.
Com o investimento no Centro de P&D, a JBS pretende desenvolver novas técnicas que acelerem os ganhos de escala e reduzam os custos de produção da proteína cultivada, antecipando sua comercialização no mercado. “Estamos ampliando nossa plataforma global para atender às novas tendências de consumo e ao crescimento da população global. A aquisição da BioTech Foods e o novo centro de pesquisa colocam a JBS numa posição única para avançar no setor de proteína cultivada”, complementa Tomazoni.
“Nós, do GFI, ficamos muito felizes em termos sido chamados para colaborar no projeto de proteína cultivada da JBS. Nosso objetivo é sempre facilitar a entrada de novos agentes para que o mundo das proteínas alternativas se desenvolva mais rápido. Tivemos o privilégio de ver a empresa potencializar esses recursos para buscar a liderança da área, gerando uma das estratégias mais arrojadas da história do setor. Foi uma honra ver esse projeto nascer e aprender com o time de executivos da JBS durante o processo de planejamento”, afirma Gustavo Guadagnini, presidente do GFI Brasil.
Texto: Vinícius Gallon
Revisão: Gustavo Guadagnini
Em dezembro de 2020, um restaurante localizado próximo ao rio Singapura criou um marco na forma com que o mundo deve passar a consumir carne nas próximas décadas. Isso porque, pela primeira vez, uma empresa conseguiu autorização para comercializar a carne cultivada, uma forma de produção do alimento que parte da reprodução celular e evita o abate animal. Em pouco tempo, a técnica aprimorada desde 2013 ganhou força e agora conta com produtos capazes de mimetizar a carne de frango, boi, camarão e até o leite materno. Somente no ano passado, de acordo com levantamento do The Good Food Institute (GFI), o setor recebeu US$ 360 milhões em investimentos, seis vezes mais que em 2019.
Com o mercado aquecido em pelo menos dez países, a possibilidade de se produzir uma carne de cultivo celular movimentou startups e grandes empresas – são ao menos 70 mapeadas pelo GFI. Elas dão o tom das diversas demonstrações do produto que tomaram restaurantes ao redor do mundo. O Brasil segue na esteira deste processo e desponta iniciativas que preparam um terreno inevitável para tornar a carne cultivada um produto básico de consumo. Uma previsão da consultoria alemã AT Kearney, por exemplo, aponta que 35% da carne consumida no mundo deverá ser produzida a partir da reprodução celular em 2040.
Uma pesquisa do GFI mostrou que, em 2020, metade dos brasileiros diminuiu o consumo de carne, especialmente por motivos relacionados à saúde e a restrições médicas. Neste ano, com a alta dos preços dos alimentos no país e a crise global provocada pela pandemia de Covid-19, o consumo ficou abaixo do recorde registrado em 2019 (7,93 milhões de toneladas), caindo para 7,73 milhões de toneladas, segundo informações do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
No entanto, é fato que o consumo de proteína animal tem crescido, sobretudo na África e na Ásia. De acordo com a USDA, em 2021, o consumo mundial de carne bovina deve chegar a 60,04 milhões de toneladas, representando um crescimento de 1,6% em relação a 2020 (59,06 milhões de toneladas). Para se ter uma ideia, desse total, 10,08 milhões de toneladas serão consumidos pelos chineses, representando uma alta de 6,3% em relação a 2020 (9,48 milhões de toneladas), atrás apenas dos Estados Unidos, país que mais consome carne bovina no mundo (12,52 milhões de toneladas em 2021).
Para seguir alimentando a população, que deve chegar a quase 10 bilhões de pessoas em 2050, a ONU estima que será necessário aumentar a produção de alimentos em 70%. Neste caminho, produtos como a carne cultivada se tornam uma necessidade para garantia da segurança alimentar, em especial porque reduz o impacto da produção de alimentos no meio ambiente.
A pauta é urgente: o último Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas mostrou que os impactos da ação humana no meio ambiente podem ser irreversíveis. Na contramão deste processo, estudo encomendado pelo GFI e GAIA mostra que a carne cultivada pode derrubar a pegada de carbono em até 80%. Pesquisas anteriores também revelam um menor uso de água azul (redução de 51% a 78%) e menor poluição ao ar (redução de 29% a 93%) na comparação com a carne convencional.
Contudo, apesar da urgência climática, o que realmente deve garantir que a carne cultivada chegue aos restaurantes e supermercados e ganhe o público brasileiro e global, é a experiência sensorial idêntica ou ainda melhor que a promovida pela carne animal, além do preço competitivo ou inferior à carne tradicional.
De acordo com a especialista de ciência e tecnologia do GFI Brasil, Dra. Amanda Leitolis, o GFI trabalha para entender essas e outras demandas dos consumidores e da indústria, contornando os desafios que esta tecnologia apresenta. “Na área de carne cultivada, mas não somente nela, nosso papel também é o de contribuir para estruturar e articular o ecossistema de inovação”, afirma. “Conectando os atores dessa cadeia, com habitats de inovação, investidores e parceiros”.
Entenda a tecnologia
Um artigo publicado em 2019 pela doutora em filosofia da biologia Cor van der Weele indicou que, do ponto de vista comportamental, quanto mais a carne cultivada for conhecida e normalizada, mais estranho será consumir a carne convencional. Isso significa que uma carne produzida a partir do cultivo celular pode parecer distante da nossa realidade, mas o processo é mais comum do que se imagina. De modo geral, a indústria de alimentos já está acostumada a usar biorreatores na cadeia produtiva, por exemplo, como na produção de iogurtes, queijos e cervejas.
O processo de produção da carne cultivada é simples. Primeiro, se retira uma célula do animal vivo por biópsia ou a partir de uma célula embrionária. Ela é, então, alimentada com nutrientes e fatores de crescimento em uma placa de cultivo fora do animal, de modo que se multiplica em meio a um substrato até formar um tecido completo. “O crescimento destas células em em um ambiente controlado é o que chamamos de cultivo celular”, explica Leitolis. “Primeiro se coleta e expande essas células e se coloca isso em uma estrutura para fazer a engenharia de tecidos, que é construir o tecido de novo”. Esta estrutura usada como suporte para as células é chamada de scaffold.
Tudo é feito em biorreatores, que funcionam como um vaso onde a célula poderá se multiplicar. A tecnologia é conhecida, já que importa conhecimento da biomedicina, com os procedimentos podendo ser feitos em laboratórios de engenharia tecidual.
Retirada das células
A biópsia é feita por agulha ou incisão, com prós e contras nos dois métodos. A biópsia por agulha gera pouco ou nenhum desconforto para o animal, mas retira pouca quantidade de células, exigindo várias amostragens. Já a incisão retira uma amostra maior de tecido, exigindo apenas uma amostragem, mas é mais agressiva para o animal, exigindo maior uso de analgésicos e sedativos para garantir o seu bem estar. Em ambos os casos, a célula pode dar origem a uma linhagem, ou seja, pode ser usada na produção de vários tecidos ao longo do tempo. Na sequência, a amostra será diferenciada, de modo a dividir o tecido muscular do adiposo.
“O que faz essa célula, quando se divide, ir em direção a determinado tecido, depende do microambiente, o material e o meio de cultura que faz sua nutrição” explica o CEO da Tubanharon e engenheiro químico Dr. Luismar Porto. A distribuição celular vai definir gosto, aparência e maciez da carne.
Meio nutritivo
O meio nutritivo funciona a base de água, nutrientes, aminoácidos e hormônios. Amanda explica que um dos métodos mais conhecidos de suplementar este substrato utiliza o soro fetal bovino como meio para o desenvolvimento celular, mas as empresas procuram cada vez mais eliminar esta forma de cultivo e evitar o abate animal em qualquer etapa. A startup israelense Aleph Farms é uma das gigantes no setor que já utiliza um meio nutritivo 100% vegetal. Nesse caso, a suplementação é feita de forma sintética. O método permite o crescimento celular sem a necessidade de se usar antibióticos, como acontece na cadeia pecuária tradicional.
“Toda vez que apostamos contra a tecnologia, nós perdemos”, aposta Luismar Porto. “Com os investimentos necessários, é uma questão de tempo até não termos mais esse problema como um fator limitante”, conclui. O processo de cultivo celular, por exemplo, já existe há mais de cem anos. A carne de cultivo celular é apenas uma aplicação diferente de uma tecnologia já desenvolvida.
Estrutura
Já o scaffold funciona como uma estrutura de ancoragem da célula e atua como a parte mais fibrosa da carne, dando um suporte mecânico. Ele pode ser de origem vegetal e deve ser comestível, como a celulose, a proteína da soja ou micélios fúngicos. Tudo isso permite que o produto final se pareça ao máximo possível com a carne tradicional. Segundo Porto, em alguns casos é possível, inclusive, construir um tecido mais proteico e mais saudável que o natural.
“Nós vamos começar imitando alguns cortes da carne. Provavelmente depois vamos esquecer isso e teremos um alimento que é mais nutritivo, seguro, sustentável e muito mais amigo do meio ambiente”, aponta. Amanda Leitolis completa que a tríade célula, estrutura e moléculas bioativas podem ser trabalhadas em diferentes combinações para se produzir uma carne mais magra, por exemplo, ou com mais vitaminas, como a B12. “Conseguindo controlar o ambiente eu consigo controlar o produto final”, afirma.
Novos produtos
A diversidade de cortes e diferenciação de células tem apresentado resultados bem sucedidos ao redor do mundo e que devem chegar ao Brasil. A tecnologia caminha a passos largos para encontrar alternativas cada vez mais similares à carne tradicional. Vale lembrar que os novos produtos recebem autorizações de agências nacionais para comercialização, ou seja, são seguros para consumo. Conheça alguns exemplos lançados em eventos privados de degustação:
Com a quantidade de possibilidades, em comum, as empresas pioneiras neste mercado costumam apresentar o mesmo desafio: produzir em larga escala e baratear os insumos para diminuir o custo final dos produtos.
No Brasil, startups se preparam
Luismar Porto foi professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química da Universidade Federal de Santa Catarina por anos. Aposentado, hoje se dedica aos estudos iniciais em sua consultoria para trazer a tecnologia ao Brasil. A ideia de investir no modelo começou quando um vídeo de uma aula sua sobre carne cultivada foi publicado no Youtube e teve grande repercussão. “Eu venho falando sobre a possibilidade de se desenvolver a carne cultivada há dez, quinze anos. A tecnologia parte da engenharia de biomateriais e biomédica, dedicada à criação de tecidos humanos”, conta.
Foi também o que aconteceu com a Dra. Bibiana Matte, fundadora da startup de carne cultivada Ambi Realfood. Por meio de um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul, Matte se tornou a primeira pesquisadora a receber investimentos para desenvolver o produto em uma startup brasileira. Doutora em Patologia Bucal, é também diretora científica da Núcleo Vitro, empresa que estuda produtos para a saúde utilizando o modelo de pele equivalente. “Dentro disso temos um leque bem grande de estudos indo para a parte de pele, de vírus, e ano passado, querendo pensar em outras áreas que a nossa expertise de engenharia de tecidos e de cultivo de células poderia atuar, me debrucei sobre o assunto da carne cultivada”, afirma.
Hoje, com uma equipe multidisciplinar que inclui médicos veterinários, engenheiros de biotecnologia e de processos, biomédicos e profissionais da comunicação, o objetivo de Matte é se tornar a primeira startup a entregar um produto à base de carne cultivada no Brasil. Ela ressalta o apoio que o GFI deu nos primeiros passos da startup e na consolidação da tecnologia no Brasil. “Nós precisamos trabalhar as nossas próprias tecnologias. Eu não quero que daqui 20 anos a gente esteja importando, porque a gente tem uma tecnologia nacional. O Brasil é muito relevante no cenário de crescimento de animais como um todo para consumo e essa busca por outras alternativas faz sentido para nós”.
Gigantes do setor também prometem acompanhar de perto a evolução da tecnologia no Brasil. É exemplo a parceria celebrada pela multinacional BRF e a Aleph Farms, com apoio do GFI.
Pesquisa acelera inovação
Segundo Dra. Amanda Leitolis, parte do trabalho da área de ciência e tecnologia do GFI é focado em contribuir com o desenvolvimento de pesquisas de alto impacto e em áreas pouco exploradas, o que ajuda a antecipar os desafios da tecnologia e promover novas soluções. Entre as ações estão a moderação de um diretório de pesquisa, o financiamento a pesquisas de acesso livre e a realização de cursos e formação de profissionais com conhecimento em proteínas alternativas.
No Paraná, essa expertise contribuiu diretamente para a oferta da primeira disciplina de Introdução à Zootecnia Celular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica a professora Dra. Carla Molento, coordenadora do Laboratório de Bem-estar Animal. “Nós temos como oferecer essa disciplina por causa da parceria com o GFI”, diz. “O trabalho que o GFI faz internacionalmente e no Brasil constitui excelência na reunião de conhecimentos para ensino”.
A disciplina partiu de uma série de estudos realizados por pesquisadores ligados ao laboratório, pioneiros em trazer a perspectiva sobre carne cultivada aos espaços de ensino, pesquisa e extensão da universidade. Profa. Carla Molento analisa que a proposta é entender a nova cadeia de proteção de alimentos como zootecnia celular. “De início quem está envolvido com a cadeira convencional da carne tem uma certa resistência, mas na medida em que percebe que é uma forma adicional de produzir alimentos para consumo humano, inclusive de origem animal, mas de uma forma inovadora, acaba sendo parceiro”, aponta.
O grupo inclui profissionais de diversas áreas, inclusive da administração, e tem tido sucesso em publicar questões ligadas ao desenvolvimento dessa cadeia de produção, para compreender as etapas, cenários e impactos sociais da indústria de proteínas alternativas a partir da proteção animal.
A disciplina estuda o motivo da transição nos sistemas de produção de alimentos, a relação com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a simulação de possíveis novos produtos e as formas que a carne cultivada pode contribuir com a segurança alimentar no planeta. “Nossa intenção é contribuir para que outras universidades também possam oferecer”, conclui a professora.
Para ela, é fundamental que o Brasil se torne mais hábil para conversar sobre esse tema, ultrapassando concepções que nem sempre correspondem à realidade. “Outros alimentos que estamos acostumados a comer já são resultantes de processos de crescimento em reatores. O que estamos vendo é que as carnes vegetais que já estão no mercado estão ultrapassando todas as previsões em termos de aceitação e rapidez de seu crescimento. O mesmo deve acontecer com a carne cultivada”, avalia.
Amanda Leitolis conclui lembrando que o Brasil tem a tradição da tecnologia e um ambiente científico propício. “O Brasil é um dos maiores produtores de publicação científica do mundo e a maior parte da nossa pesquisa está concentrada em ciência vegetal e animal. É o momento certo para expandir esse tipo de tecnologia”.
Texto: Victoria Gadelha
Revisão: Vinícius Gallon
Novos estilos de vida mais conscientes e preocupados com a saúde e o meio ambiente têm estimulado o surgimento de novos gêneros alimentares, como o flexitarianismo, em que o consumidor diminui o consumo de produtos de origem animal sem interrompê-lo completamente. Enquanto as alternativas à base de plantas já possuem um lugar consolidado na dieta dos veganos e vegetarianos, os alimentos híbridos (blended, em inglês) vieram para atingir um público que se importa com saúde e sustentabilidade mas não quer abrir mão da experiência sensoral e da nutrição associadas à carne animal. Incorporar vegetais em pratos tradicionalmente feitos somente de carne, tornando-os híbridos, é uma forma de mudar a dieta dos consumidores sem a necessidade de grandes mudanças no estilo de vida.
Em vez de “plant-based”, é “plant forward”: esse termo guarda-chuva inclui qualquer dieta ou padrão alimentar de quem se compromete a comer mais vegetais e menos carne, mas não busca eliminar todos os produtos de origem animal nem se rotular de forma mais estrita. Os motivos, de acordo com o relatório “The Power of Meat”, lançado em 2020 pela The Food Industry Associaton (FMI), incluem o fato desses produtos facilitarem uma maior ingestão de vegetais e proporcionarem uma maneira mais saudável de comer carne.
Além de serem melhores para a saúde do consumidor (por conterem menos gorduras saturadas, colesterol e sódio, mais fibras e vitaminas) os produtos híbridos também são melhores para o meio ambiente, uma vez que a pecuária é uma das atividades que mais poluem, desmatam e emitem gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo o World Resources Institute (WRI), os norte-americanos comem 10 bilhões de hambúrgueres todos os anos. De acordo com o instituto, se um terço da carne em cada hambúrguer fosse substituída por cogumelos, seria economizada uma quantidade de água equivalente ao uso anual de água doméstica de 2,6 milhões de americanos. Em relação à poluição atmosférica, seria o equivalente a tirar 2,3 milhões de carros – e suas emissões de CO2 – das ruas por ano. Se tratando de terras, o WRI relata que o “blend” nos hambúrgueres reduziria o uso global de áreas agrícolas em mais de 36.260 km2, uma área que equivale a 4,395 campos de futebol.
Fora o impacto ambiental, a estratégia de incrementar vegetais em alimentos de origem animal também pode reduzir os custos de produção e comercialização de vários produtos. No caso da carne cultivada, por exemplo, misturar uma porcentagem de vegetais nas células animais é essencial para baratear sua produção que, apesar de já ser uma realidade, enfrenta desafios relacionados à redução de custos, aumento de escala e regulamentação legal. O único lugar no mundo em que a carne cultivada já está aprovada para venda é em Cingapura. No final de 2020, a marca Eat Just lançou sob o nome de GOOD Meat o primeiro frango cultivado híbrido, usando 70% de frango cultivado e 30% de base vegetal.
Enquanto a demanda por carne cresce, ao mesmo tempo em que a demanda por alternativas vegetais também, as empresas que produzem alimentos híbridos se posicionam bem entre as duas categorias. Nos últimos dois anos, gigantes do mercado embarcaram na tendência e adicionaram linhas híbridas aos seus catálogos de produtos. A Tyson, maior processadora de carne dos EUA, lançou pela marca Aidells Whole Blends salsichas e almôndegas de carne com misturas vegetais, como frango com espinafre e queijo feta ou frango com abacaxi desidratado. Já a Applegate criou um hambúrguer híbrido feito de carne de vaca com couve-flor, espinafre, lentilha e abóbora, e outro feito de peru com batata-doce, feijão branco, couve e cebola. Por utilizarem menos carne animal, eles conseguiram utilizar um produto “grass fed”, ou seja, de animais que foram alimentados naturalmente no pasto, sem o uso de rações com grãos e remédios. Cada hambúrguer da marca (106g) entrega por volta de 1⁄3 de xícara de vegetais.
A Lisanatti Foods foi além e lançou um queijo híbrido: a mozzarella vegetal, à base de amêndoas, é misturada com caseína (proteína derivada do leite), permitindo que o queijo vegetal imite bem a textura do queijo animal. Dessa forma, o produto é apto para vegetarianos, flexitarianos e para o consumidor comum, mas não para quem é vegano ou tem alergia à proteína do leite de vaca (APLV). A Misfit Foods, que até 2019 era uma empresa que produzia sucos prensados a frio a partir de frutas imperfeitas (que seriam jogadas fora), decidiu entrar no ramo das carnes híbridas. Motivada pela urgência ambiental aliada à crescente demanda do mercado, a marca criou produtos misturados (como hambúrguer bovino com beterraba ou salsicha de frango com cenoura e curry) que vêm numa proporção de 50 a 60% carne e 40 a 50% vegetais, oferecendo ao consumidor um bom “empurrão” para longe da carne, mesmo enquanto ele come carne.
A Perdue, que está entre as principais empresas de grãos e de processamento de frango, peru e porco nos EUA, lançou também em 2019 a Chicken Plus, uma linha voltada para o público infantojuvenil que oferece nuggets híbridos, feitos de frango com couve-flor, grão de bico e proteínas vegetais. Essas formulações, feitas com ingredientes naturais, permitem que no mínimo 1⁄3 da carne animal seja substituída pela proteína à base de plantas, aumentando tanto o rendimento quanto o valor nutricional do produto (adicionando mais fibras e minerais, mantendo o nível de proteína e reduzindo calorias, gorduras e colesterol).
Por mais que a presença de produtos híbridos seja relativamente nova nos supermercados, o conceito não é novidade entre chefs e cozinheiros. A James Beard Foundation é uma organização sem fins lucrativos que defende um padrão de qualidade baseado no talento e na sustentabilidade, apoiando pessoas que formam a cultura alimentar da América através de seus Programas de Impacto. E um dos programas de maior sucesso é o Blended Burger Project: desde 2015, a fundação, em parceria com o Mushroom Council, desafia chefs de todos os Estados Unidos a criarem hambúrgueres que sejam mais saudáveis e sustentáveis, substituindo 25% da carne animal por cogumelos frescos.
No primeiro ano da competição, poucas dezenas de cozinheiros participaram. Em 2019, último ano do evento (que foi temporariamente suspenso por causa da pandemia), o número de inscritos subiu para 500. Criatividade culinária, apresentação e perfil de sabor são os critérios que levam o painel de especialistas da fundação a escolherem 5 vencedores entre os 25 mais votados online. Cada um dos chefs vencedores ganha 5 mil dólares e uma viagem para cozinhar seu hambúrguer híbrido na James Beard House, em Nova Iorque. Lá, os convidados escolhem o favorito da noite, que ganha um reconhecimento especial do People ‘s Choice. A intenção do Blended Burger Project é educar as pessoas sobre o futuro da alimentação e mostrar que é possível darmos um passo em direção a um mundo mais equilibrado sem abrir mão de hábitos e prazeres. Os cogumelos são os escolhidos para o “blend” por dois motivos: primeiro, por terem uma pegada ambiental baixa, gastando pouca água, energia e espaço, já que podem ser cultivados até em canteiros verticais. Segundo, por terem textura semelhante à da carne, boas propriedades de retenção de umidade e sabor umami, que realça o gosto do hambúrguer mesmo quando a quantidade de sal é reduzida.
De fato, um estudo conjunto de 2014 da UC Davis e do Culinary Institute of America, publicado no Journal of Food and Science, mostrou que misturar a carne moída do hamburguer com cogumelos, numa proporção de até 50-50%, torna a preparação mais saborosa do que a original graças ao umami, confirmando que é possível reduzir a carne – e consequentemente o teor de gordura, sódio, colesterol e calorias gerais – de um produto sem sacrificar seu sabor.
Em 2016, a Sodexo, gigante de serviços de alimentação, trocou os hambúrgueres de carne bovina por hambúrgueres híbridos com cogumelos em cerca de 250 distritos escolares (órgãos responsáveis pela administração de todas as escolas públicas de uma região) atendidos pela empresa nos EUA. Na época, os testes piloto nas escolas demonstraram que 85% dos estudantes preferiram os novos hambúrgueres aos antigos. Essa simples mudança na receita representa 250 milhões de calorias e 15 milhões de gramas de gordura saturada a menos nas 7 milhões de refeições que a Sodexo serve para os alunos todos os meses.
Em 2017, o The Mushroom Council lançou o blenditarian.com, um hub online que registra e celebra a crescente popularidade dos alimentos híbridos nos restaurantes, lanchonetes e cozinhas caseiras dos Estados Unidos e mundo afora. Sob o slogan “o blend é o futuro”, o movimento incentiva que mais pessoas se tornem “blenditarianas” e experimentem fazer essas misturas tanto pelo sabor, quanto pela saúde e pelo meio ambiente. A aposta do slogan parece ter sido acertada, já que pouco tempo depois da criação do hub o “blend”, inicialmente restrito a um nicho mais artesanal, começou a chegar nas prateleiras dos supermercados na forma de produtos prontos para serem consumidos por qualquer um.
Os vários tipos e sabores garantem que exista um produto híbrido para cada pessoa que quer diminuir um pouco – ou até bastante – a ingestão de produtos de origem animal sem ter que migrar para alternativas 100% vegetais. Por mais que o veganismo seja um movimento com cada vez mais adesão, apoio e potência, muitas pessoas ainda têm dificuldade em adotar essa dieta e estão utilizando os produtos híbridos para reduzir seu consumo de carne. Entender que a demanda por carne vai continuar crescendo, mas que seus impactos podem ser minimizados com a inclusão de plantas na sua composição, parece ser uma abordagem realista que nos permite pensar em soluções concretas para um planeta que precisará, em pouco tempo, alimentar 10 bilhões de pessoas.