Texto: Bruna Corsato
Revisão: Camila Lupetti, Cristiana Ambiel, Katherine de Matos e Vinícius Gallon
Pensando em acelerar a inovação na indústria de proteínas alternativas, o GFI realizou a pesquisa “Oportunidades e Desafios na Produção de Produtos Feitos de Plantas Análogos aos Produtos Animais”. Através da contribuição de 21 empresas atuantes nas indústrias do mercado de produtos vegetais no Brasil atualmente, foram identificados os maiores desafios no desenvolvimento de produtos à base de plantas análogos aos produtos animais com a qualidade, preço e as características sensoriais buscadas pelos consumidores.
A partir das informações compartilhadas, o GFI Brasil identificou sete linhas de pesquisa prioritárias para o avanço do mercado de produtos vegetais no Brasil, sendo as principais:
Entretanto, a biodiversidade do Brasil possui uma grande variedade de matérias-primas com potencial para se tornar fonte de proteína para a indústria plant-based, como feijões, arroz, aveia, centeio, milho, amendoim e mais. A pesquisa científica é o elo que falta para transformar esse potencial em realidade. Pesquisas adicionais são necessárias para definir os processos de extração adequados para cada uma das proteínas, além de melhorias das funcionalidades proteicas e nutricionais, o que proporcionará um produto final de maior qualidade e menor custo.
É possível entregar essas características aprimorando as funcionalidades das proteínas, gorduras e carboidratos e também através da ação de certos aditivos. Para chegar na experiência sensorial desejada pelos consumidores, é fundamental ter estudos de desenvolvimento de ingredientes com funcionalidades para dar estrutura aos produtos, uma vez que os agentes de textura disponíveis atualmente possuem desempenho incompatível com as necessidades do mercado.
As proteínas vegetais ainda apresentam forte sabor residual, o que torna mimetizar completamente o produto animal um grande desafio para a indústria. A construção do sabor dos produtos deve ser feita de forma que resulte em maior naturalidade no produto final. Portanto, o desenvolvimento de ingredientes que atendam a essas demandas representa grande oportunidade para as empresas do setor.
Atualmente, os produtos vegetais ainda possuem formulações complexas e com muitos ingredientes com os quais o consumidor não é familiarizado, tornando, muitas vezes, os rótulos difíceis de serem compreendidos e criando barreiras para a compra. Por isso, é necessário simplificar as formulações para ir ao encontro dessa vontade do consumidor. Uma possibilidade de viabilizar esse esforço é realizar pesquisas que desenvolvam alternativas para substituir aditivos, aromas e corantes modificados por ingredientes conhecidos pelo brasileiro.
Dentro do contexto brasileiro, a maioria dos consumidores de produtos feitos de plantas é composta por pessoas que reduzem o consumo de produtos animais, com esse grupo chegando a 49% da população em 2020, de acordo com pesquisa do GFI Brasil..
Por isso, é importante que o produto final atenda à demanda desse grupo e entregue as características de saudabilidade desejadas. Ou seja, produtos que mimetizam o tradicional com valor nutricional equiparado ou superior ao do produto de origem animal. Em um mercado cada vez mais competitivo, a qualidade nutricional pode ser um dos principais diferenciais competitivos. Por isso, é importante que a indústria se dedique a aprimorar características nutricionais como diminuir o teor de gordura e sódio, aumentar o teor de proteína e fibras, etc.
Desenvolver produtos que vão ao encontro dessa combinação de fatores representa tanto uma grande oportunidade quanto um grande desafio para o futuro da indústria. A partir dessas informações, nossos especialistas identificaram as seguintes áreas de oportunidade para o setor de proteínas alternativas:
Textura – proteínas com texturas diferenciadas e melhores funcionalidades, tecnologias adequadas para formação de fibra, retenção da gordura e umidade (suculência e sensação de preenchimento).
Sabor – reduzir sabor residual de proteínas vegetais, maior naturalidade, aromatização natural.
Experiência de consumo – derreter, gratinar (queijos), cor (mudar durante cozimento), textura, sabor e aparência.
Custo – Paridade, similaridade.
Nutrição – equivalência nutricional, redução de sal e gordura saturada.
Clean label – estabilizantes (substitutos para a metilcelulose), aromas, conservantes, ingredientes conhecidos pelo consumidor.
Para acessar a análise dos especialistas do GFI na íntegra, basta clicar aqui. O relatório é gratuito e de acesso aberto a todos, proporcionando a livre circulação de conhecimento e fomentando o crescimento do setor como um todo.
Texto: Victória Gadelha
Revisão: Vinícius Gallon
A meta estabelecida pelo Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura terrestre a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais demanda uma redução drástica das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Nos últimos anos, muitos avanços tornaram os setores de transportes, indústrias e energia mais limpos. No entanto, por mais fundamentais que sejam todos esses esforços, eles ainda são insuficientes para limitarmos o aquecimento do planeta. Isso porque o sistema alimentar global é também um dos principais emissores de GEE mas, diferente dos outros setores, seus impactos foram historicamente mal compreendidos e, só agora, começaram a ser expostos com clareza – e com a seriedade que a situação demanda.
Estudos mostram que, mesmo se todas as emissões de combustíveis fósseis fossem imediatamente zeradas, as emissões do sistema alimentar global por si só tornariam impossível limitar o aquecimento a 1,5°C e ameaçariam, inclusive, um aumento acima de 2°C. Por isso, para cumprir os objetivos do Acordo de Paris e garantir um futuro seguro, é urgente mudar a forma como nós produzimos alimentos e, principalmente, a forma como nós consumimos proteínas.
O sistema alimentar é responsável por 34% das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. A produção de proteína animal, sozinha, gera metade desse valor, que é maior do que as emissões totais (de todos os setores combinados) dos EUA.
Essas emissões vêm de várias fontes, principalmente do desmatamento (para abrir pastagens e plantar os grãos que viram ração dos animais de abate), da produção e do uso de fertilizantes e agroquímicos, da fermentação entérica e do esterco dos ruminantes (que, juntos, são responsáveis por 30% das emissões de metano) e da queima de combustíveis fósseis na cadeia de produção e abastecimento de alimentos. A pecuária (pastagem e produção de grãos para ração) ocupa mais de 70% de todas as terras agrícolas do mundo e 30% da superfície terrestre. Mesmo assim, fornece apenas 17% do suprimento alimentar da humanidade.
Com a população mundial prevista para alcançar 10 bilhões de pessoas em 2050, é esperado que o consumo de carne aumente a ponto de dobrar nos países de renda média. E dobrar a produção desse setor, sem mudar seus métodos, significa dobrar todos os impactos que ele gera – em um mundo com recursos naturais já esgotados.
É por isso que as proteínas alternativas se apresentam como uma solução potente e escalável para uma transição eficaz no sistema alimentar. Novo estudo do The Good Food Institute com o Climate Advisers indica que uma mudança no consumo de proteínas é capaz de fornecer de 14 a 20% da mitigação de emissões que o mundo precisa até 2050 para não ultrapassar o aquecimento de 1,5°C. Além disso, é capaz de acelerar outras soluções naturais ao, por exemplo, liberar milhões de hectares de terras que podem ser destinada para estratégias de conservação, gestão com foco no clima, segurança alimentar, proteção da biodiversidade, etc.
As proteínas alternativas podem ser divididas em dois tipos principais: feitas de plantas (plant-based), que são produtos feitos de vegetais que imitam o sabor, formato e textura das carnes (bovina, suína, de frango, peixe, frutos do mar…), laticínios e derivados; e carne cultivada, fabricada diretamente a partir de células animais, resultando num produto igual ao convencional. A alta eficiência de ambas no uso da terra em relação à carne bovina é, sem dúvidas, uma das suas maiores vantagens, já que precisam de até 99% e 95% menos solo para serem produzidas, respectivamente.
Ao invés de usar terras para cultivar os grãos que alimentam os animais que, por sua vez, são abatidos para nos alimentar – e ocupar mais terras para criar todos esses animais – as colheitas podem ser usadas diretamente para produzir carne à base de plantas. Dessa forma, deixamos de “terceirizar” a ingestão de proteínas através do animal e podemos tirar esse intermediário da equação. Com isso, todo o metano e o óxido nitroso gerados pela digestão e decomposição do estrume dos ruminantes deixa de ser emitido e, como dito anteriormente, as vastas terras poupadas podem ser destinadas para práticas regenerativas e de preservação.
Tanto a carne vegetal quanto a cultivada concentram seu gasto de energia em instalações que podem ter uma pegada de carbono mínima se alimentadas com energia renovável, emitindo pouco ou nenhum GEE. Assim como painéis solares e carros elétricos, as proteínas alternativas precisam ser amplamente consumidas para passarem a assumir um papel de protagonismo na redução global de gases de efeito estufa. Apesar desse momento ainda não ter chegado, as inovações do setor seguem em ritmo impressionante e indicam que, logo, as proteínas alternativas poderão competir em sabor e preço com todo tipo de carne animal.
Os produtos substitutos para carne bovina, suína e de frango já se popularizaram e estão sempre presentes em mercados e hamburguerias como uma opção para vegetarianos e veganos, mas os avanços em relação a alternativas para peixes e frutos do mar também surpreendem e, em termos de impactos ambientais, têm uma relevância importantíssima – que muitas vezes é menosprezada.
Além da pesca predatória agredir os ecossistemas marinhos ao retirar do mar trilhões de animais todos os anos, muitos peixes selvagens (como atum, bacalhau e salmão) já são pescados acima da capacidade máxima e passam a integrar a lista de espécies em extinção. O desenvolvimento de peixes e frutos do mar alternativos pode aliviar a pressão sobre a pesca industrial e os sistemas de aquicultura, que não vão conseguir suprir a lacuna entre oferta e demanda que deve se formar nos próximos anos. Ao mesmo tempo, as proteínas alternativas reduzem em até 91% a poluição dos oceanos (Causada pelo escoamento agrícola) e também poupam todos os outros recursos aquáticos, uma vez que precisam de até 99% menos água para serem produzidas do que a carne animal).
Os ganhos ambientais proporcionados por essa transição no sistema alimentar são inegáveis, mas ela também oferece benefícios cruciais à saúde global: relatório da FAO (braço da ONU para alimentação e agricultura) de 2013 já indicava que 70% das doenças infecciosas surgidas no mundo após a década de 1940 são zoonoses, ou seja, têm origem animal. Ebola, HIV/AIDS, Sars e vários vírus da gripe são algumas das doenças derivadas da crescente interação entre animais silvestres, animais para abate e seres humanos. Mas, diferente do atual, um sistema baseado em proteínas alternativas não tem potencial de desencadear novos surtos ou epidemias porque, simplesmente, não envolve a criação e consumo de animais.
Além disso, a pecuária utiliza mais de 70% de todos os antibióticos existentes no mundo, o que colabora com o aparecimento cada vez maior de superbactérias resistentes a medicamentos – que já matam entre 500 mil e 700 mil pessoas por ano. Como a produção de proteínas alternativas não depende de nenhum antibiótico, seu risco de contribuir para essa ameaça à saúde global também é nulo.
Os relatórios de mercado preveem um aumento constante no consumo de carne cultivada e feita de plantas nas economias desenvolvidas, mas os países de alta renda não são os únicos interessados nesses produtos – tanto que o primeiro centro de pesquisa de carne cultivada no mundo foi criado em Maharashtra, Índia. No entanto, as proteínas alternativas vão ficar limitadas a um nicho de mercado até atingirem uma equivalência entre preço e sabor em relação à carne animal.
Apesar de ser questão de tempo, devido a urgência dessa transição, muito pode ser feito a nível global para acelerá-la. O THe Good Food Institute e o Climate Advisers acreditam que as prioridades internacionais devem ser, nesse momento inicial, financiar a pesquisa de acesso aberto, incentivar a P&D do setor privado e apoiar a infraestrutura e fabricação de carne cultivada e à base de plantas.
E como líder mundial em inovação de proteínas alternativas, os Estados Unidos deveriam incentivar a cooperação global desse setor. Muitos países teriam interesses (ambientais e comerciais) para explorar uma diplomacia na transição do sistema alimentar. Entre eles, Noruega, Alemanha, Reino Unido, Holanda e Dinamarca, nações comprometidas com boas práticas climáticas, Israel e Cingapura, líderes em tecnologia de carne cultivada, e grandes fornecedores de proteína animal, como o Brasil, que podem aproveitar todo o know-how do setor para se tornarem líderes também no mercado de proteínas alternativas.
Os governos que entenderem a importância dessa transição e investirem, agora, na pesquisa, inovação e comercialização de carne cultivada e à base de plantas, vão se tornar os maiores na redução de emissões agrícolas, melhoria da saúde humana, proteção da biodiversidade e aumento da segurança alimentar, colaborando para a garantia de um futuro justo e sustentável.
O Fórum Brasil Bioeconomia 2021, organizado pela Associação Brasileira de Bioinovação (ABBI), já tem data definida: 9 de dezembro. Com o tema “Bioeconomia: Da Vocação à Realidade”, o evento, que está em sua 3ª edição, visa valorizar iniciativas que promovem a bioeconomia no país, tanto nas esferas públicas quanto privadas.
Serão esperados mais de 300 representantes de alto nível da indústria, governo, imprensa, investidores, academia, ONGs, startups e sociedade civil para construir massa crítica, compromisso e ações que impulsionarão o Brasil para um novo modelo bioeconômico e bioindustrial.
O Fórum contará com a presença de Paulo Ganime, Deputado Federal e Presidente da Frente Parlamentar da Bioeconomia; Maurício Adade, CEO América Latina da DSM e Presidente do Conselho Diretor da ABBI; Ismael Nobre, Diretor Executivo do Instituto Amazônia 4.0; André Valente, Gerente de Sustentabilidade da Raízen;; Gustavo Guadagnini, Managing Director do The Good Food Institute Brasil; Gustavo Sergi, Diretor de Químicos Renováveis e Especialidades da Braskem; Kelly Seligman, Gerente de Assuntos Científicos e Regulatórios da Amyris para a América Latina e Brasil; William Yassumoto, Presidente da Novozymes para a América Latina e Thiago Falda, Presidente Executivo da ABBI. A apresentação do evento e a moderação dos debates estarão nas mãos de Luís Artur Nogueira, Comentarista Econômico e Apresentador na TV Jovem Pan News.
O evento contará com dois painéis com temas estratégicos para o desenvolvimento da bioeconomia avançada no Brasil:
A bioinovação (inovação baseada em recursos biológicos e renováveis) é um dos principais pilares para a redução das emissões de gases de efeito estufa e contribuição da descarbonização de várias cadeias produtivas. Importante destacar a importância da regulamentação do mercado de carbono no Brasil para impulsionar o desenvolvimento de tecnologias voltadas à sustentabilidade, além da geração de empregos e entrada de capital estrangeiro no país.
A transformação econômica mundial está comprometida com o desenvolvimento sustentável e o Brasil possui diferenciais para se tornar um grande protagonista na bioeconomia avançada. A bioeconomia será destaque nas relações de comércio mundial nos próximos anos e o país precisa apresentar um ambiente estimulante ao investimento em inovação. É preciso então adotar uma estratégia de longo prazo considerando nossos diferenciais como agricultura sustentável, biomassa abundante e barata, alta experiência em biotecnologia na produção de etanol e a maior biodiversidade do planeta.
Com o patrocínio das empresas Amyris, BASF, Braskem, DSM, GFI Brasil, Novozymes e Raízen, o evento tem como objetivo discutir como converter as vocações do Brasil para a bioeconomia em realidade.
Maurício Adade, presidente América Latina da DSM e presidente do Conselho Diretor da ABBI, destaca que: “A atuação da ABBI é fundamental e extremamente necessária, pois une e organiza centenas de empresas brasileiras que estão voltadas ao bem maior de, através da inovação e biociência, gerar recursos e soluções biológicos e renováveis que auxiliam a sustentabilidade de todo o planeta. O Brasil tem um papel ambiental muito relevante e potencial para fazer a diferença nas metas climáticas que foram atualizadas na COP26. Mas, é claro que o governo não consegue fazer isso sozinho, precisa do apoio tecnológico das empresas. É justamente nesta etapa que a ABBI atua estrategicamente, na facilitação das relações público-privadas.”
“A biotecnologia auxilia em todos os setores da indústria, desde biocombustíveis, consumo, agronegócios, enfim, em tudo o que a sociedade faz uso. É todo um trabalho voltado para melhorar a produção, minimizar os impactos e ajudar os produtores a fazer mais com a utilização de menos recursos naturais, como redução de consumo de água, energia, aditivos e, assim, fortalecer o desenvolvimento sustentável. As empresas são peças fundamentais na economia e no meio ambiente, por isso, as decisões de seus negócios impactam muito no âmbito social. Esperamos que a edição 2021 do Fórum & Prêmio Brasil Bioeconomia ressalte e reforce a temática, mostrando como é possível movimentar a economia de maneira saudável, garantindo o fluxo econômico e gerando empregos, e que todo esse conjunto são formas de garantir a sustentabilidade”, comenta William Matsumoto, presidente da Novozymes para América Latina.
Durante o Fórum Brasil Bioeconomia acontece o Prêmio Brasil Bioeconomia 2021, que reconhece pesquisadores, empreendedores e organizações cujas soluções para as mais importantes questões do Brasil e do mundo envolvem a inovação como meio para reforçar um pacto saudável entre a natureza e a sociedade.
Texto de Elliot Swartz, lead scientist (GFI) com tradução de Bruna Scorsatto
É o começo de 2016 e eu sou um candidato a Ph.D na UCLA investigando como transformar células-tronco de seres humanos em músculo esquelético e tecidos neuronais para estudar doenças neuromusculares como ALS. Foi aqui que eu li pela primeira vez sobre Memphis Meats (que agora é UPSIDE Foods), a primeira empresa a completar uma rodada de investimento para cultivar carne a partir de células tronco de animais.
“Interessante”, pensei comigo mesmo, “mas isso não vai acontecer tão cedo. É muito caro.”
Eu sabia do que eu estava falando. Eu gastava mais de $1.000 em meio para cultura de células e reagentes por mês, usando métodos parecidos com aqueles necessários para cultivar carne.
Mas a semente estava plantada. E se fosse possível cultivar carne em escala a um custo que a fizesse um substituto viável à carne animal tradicional? Carne sem o animal. Quão difícil seria?
À medida que eu acompanhava a nascente indústria de carne cultivada, eu comecei a prestar consultoria para uma startup que queria descobrir soluções para doenças neurodegenerativas que até então não tinham tratamento, como Alzheimer e Parkinson. Descobrir novas drogas é extremamente desafiador. Em muitos casos, nós não sabemos a causa raiz da doença, o que poderia ser um bom alvo terapêutico ou mesmo o melhor método de aplicação da nova droga no alvo hipotético. Normalmente existe uma caixa-preta biológica cheia de incertezas e desconhecidos no meio do caminho. Apesar disso, a sociedade despeja bilhões de dólares nessa e em muitas outras caixas todos os anos, na esperança de fazê-las menos opacas.
Mas e a carne cultivada? Décadas de ciência anterior nos deram um entendimento de como transformar células-tronco em músculo, gordura e tecidos conectivos necessários para fazer carne. Claro, pode ser que existam formas mais eficientes de fazer isso, mas a caixa preta não revelou. Aparentemente, metade da batalha já estava ganha. Era apenas o caso de aumentar a escala e diminuir os custos, e esforços para ganhar essa outra metade da batalha já tinha começado. O timing era certo.
Então eu mergulhei de cabeça. E não fui só eu.
Hoje, existem mais de 80 empresas no mundo todo buscando criar produtos de carne cultivada prontos para consumo e dezenas mais surgiram para fornecer linhas de células, meios de cultura, scaffolds, bioreatores e outros componentes necessários para dar suporte ao crescimento da indústria.
O ritmo dessa transição está acelerando. Eu e meus colegas no GFI somos contatados quase diariamente por empreendedores em estágio inicial, estudantes universitários, investidores ou representantes da indústria de alimentos buscando entender melhor os desafios da indústria de carne cultivada e como eles podem se envolver na busca por soluções (confira algumas ideias no nosso Banco de Dados de Soluções)
Em 2015, se você dissesse a biólogos trabalhando com células-tronco que consumidores estariam comendo carne cultivada aprovada pelo governo em 2021, eles dariam risada de você. Mas em seis anos, carne cultivada foi de ficção científica à realidade – dependendo para quem você pergunta (mais sobre isso depois).
No GFI, nós sonhamos com um mundo onde as proteínas alternativas de plantas, cultivo celular ou fermentação não são mais uma alternativa. E nós estamos desenhando um roteiro para chegar lá.
Um dos melhores métodos para traçar esse roteiro é através de análises técnico econômicas (TEAs na sigla em inglês). Como dito anteriormente, TEAs são ferramentas fundamentais para exploração e priorização de áreas que justificam pesquisas adicionais, revelando os gargalos técnicos e econômicos dentro de uma determina indústria ou processo.
Até o momento, três TEAs foram publicadas sobre a produção hipotética de carne cultivada em escala comercial (Vergeer, 2021; Humbird, 2021; e Risner, 2021) e sabemos de pelo menos mais duas próximas de serem publicadas. Nós encorajamos ativamente a realização de TEAs adicionais para trazer novas perspectivas que podem ser usadas para iluminar caminhos alternativos no mapa tecnológico ao longo do tempo.
Embora adotem abordagens diferentes e dependam de diferentes suposições e fontes de dados de entrada, as três TEAs publicados são, na verdade, bastante semelhantes no alto nível de suas descobertas. Coletivamente, elas sugerem que os custos de produção de carne cultivada são altos devido ao custo atual dos meios de cultura de células, o custo atual de biorreatores (stirred-tank) em grande escala que foram usados nos exercícios de modelagem e os custos previstos de infraestrutura adicional necessária para produzir quantidades significativas de carne cultivada.
Essas TEAs sugerem que, com base em nosso conhecimento atual, reduzir os custos do meio de cultura e do biorreator, além de melhorar a produtividade do processo são essenciais para obter faixas de custo competitivo com algumas carnes convencionais. A indústria de carne cultivada provavelmente também exigirá abordagens inovadoras tanto do lado comercial quanto do lado tecnológico, incluindo opções de financiamento flexíveis e desenvolvimento de nova tecnologia para se aventurar em faixas de custo verdadeiramente competitivas com a maioria das carnes convencionais (para considerações adicionais, incluindo a importância de produtos híbridos na realização desse objetivo, veja essa thread no Twitter).
A empreitada da carne cultivada é representada por Sam e Frodo deixando o Condado para viajar para Mordor (ou, neste caso, criar carne cultivada que compete em preço, sabor e conveniência). A indústria da carne cultivada acaba de deixar o Condado. O mapa rudimentar da Terra Média que eles estão seguindo, informado pelos TEAs atuais, mostra as maiores montanhas (meios de cultura de células e custos de biorreator), florestas (instalações de qualidade alimentar, incerteza na tecnologia de aumento de escala) e rios (regulamentos, processo de produtividade aumentado) ao longo do caminho, mas não revela os melhores caminhos ou tecnologias para nos guiar sobre, através ou em torno deles. Os detalhes completos da jornada pela Terra Média do início ao fim ainda são obscuros.
O mapa revela uma jornada intimidante – e para os pessimistas, uma jornada que pode parecer intransponível ou incerta demais. Mas os otimistas entendem que a jornada apenas começou. O mapa fica mais claro com o tempo e existe ajuda ao longo do caminho. Dadas as circunstâncias e o que está em jogo, a jornada da carne cultivada é uma que vale a pena. Como Sam e Frodo, só precisamos colocar um pé na frente do outro. Temos que ser orientados para a ação, aprender através de tentativa e erro e seguir o caminho que se mostra mais promissor. Felizmente, os otimistas têm um viés para a ação, enquanto os pessimistas têm um histórico humilde de não conseguir imaginar novos paradigmas tecnológicos.
Como cientista-chefe de carne cultivada na equipe de Ciência e Tecnologia do GFI, meu papel é transformar o obscuro mapa da Terra Média em Google Maps que mostra vários caminhos e linhas do tempo enquanto prevê o trânsito ao longo do caminho.
No GFI, começamos a dissecar esses direcionadores de custo da carne cultivada em muito mais detalhes, e o primeiro foi o meio de cultura de células porque é o principal impulsionador dos custos atuais de produção de carne cultivada – a primeira montanha a atravessar.
Em 2019, a vice-presidente de Ciência e Tecnologia do GFI, Dra. Liz Specht, publicou um relatório que destacou os geradores de custos em um modelo de meio de cultura de células. Ela explicou como os custos de meio poderiam ser reduzidos em 99% ou mais com a conversão para uma formulação de grau alimentício e fazendo suposições modestas de escala para os componentes de custo mais alto. A análise passou a servir de base para as considerações feitas em todas as TEAs publicadas até o momento que, conjuntamente, mostram que os custos de meio serão impulsionados principalmente por fatores de crescimento e, secundariamente, por aminoácidos. A indústria de carne cultivada precisará usar esses componentes de forma eficiente e produzi-los em níveis de purificação de grau alimentício ou mesmo de ração para atingir custos adequados para a produção de carne cultivada em escala comercial.
Para ajudar a entender onde a indústria está ao longo dessa trajetória, publicamos uma pesquisa geral no início deste ano, mostrando que muitas empresas de carne cultivada já reduziram drasticamente os custos de meio, um feito também alcançado independentemente pelo grupo do Dr. Paul Burridge na Northwestern University. Empresas também estão realizando experimentos com aminoácidos e outros componentes do meio de cultivo em suas versões de grau alimentício para humanos (food grade) e para animais (feed grade). Embora mais dados sejam necessários, os resultados iniciais sugerem que a abordagem é viável.
Uma próxima análise visa elucidar caminhos para a redução de custos dos fatores de crescimento. Também estamos contratando um pesquisador para ajudar a mapear nossa compreensão atual do metabolismo das células animais com o objetivo de identificar as fontes de aminoácidos mais adequadas para a produção de carne cultivada nas quantidades que a indústria exigirá conforme ela se expande.
Mas nosso foco se estende além da primeira montanha. Estamos olhando para o mapa completo, localizando os desafios ao longo de toda a cadeia de valor da carne cultivada. Para acelerar o progresso em direção ao “santo graal” da indústria – a produção de cortes inteiros de carne – destinamos todo o nosso edital de pesquisa em 2021 a essa meta. O GFI concedeu quase U$ 3 milhões a treze equipes de pesquisa para começar a trabalhar na criação de cortes inteiros de carne cultivada. Escrevemos um extenso artigo de revisão sobre trecnologias de scaffolding na revista Advanced Science (imprensa), financiamos uma avaliação do ciclo de vida que mapeia os principais motores ambientais de produção, intensificamos a expansão do acesso a linhas de células e construímos bancos de dados abertos, cursos e comunidades ao longo do caminho.
As futuras análises planejadas para 2022 permitirão uma melhor compreensão dos requisitos de infraestrutura para a produção de carne cultivada em escala comercial e examinarão diferentes métodos de cultivo de células (todas as TEAs até agora examinaram apenas uma maneira de fazê-lo).
Cada uma dessas análises serve como um guia de orientação crucial para cientistas, empresas e outras partes interessadas ao longo da jornada da carne cultivada. Mas sabemos que não podemos construir a versão completa do roteiro “Google Maps” sozinhos. Precisaremos construir um ecossistema inteiro, criando um efeito cascata para transformar as centenas de mentes talentosas trabalhando em soluções em números que cheguem aos milhares – e eventualmente centenas de milhares.
A pesquisa que publicamos no início deste ano mostra que aproximadamente US$ 12 milhões em editais de pesquisa pré-competitiva foram concedidos para pesquisa de carne cultivada entre 2005 e o início de 2021. Em comparação, os gastos públicos em P&D para energia renovável chegaram a US$ 5,5 bilhões em só 2018 – uma diferença de 450 vezes.
Como resultado, a pesquisa acadêmica em carnes cultivadas está atrasada. Startups do setor levantaram mais de US$ 1 bilhão desde 2015 e várias estão caminhando em direção à comercialização em pequena escala. Embora mais da metade desse total tenha sido gerado em 2021 e ainda não tenha sido realmente implantado, os totais comparativos significam que a grande maioria da pesquisa de carne cultivada até o momento foi realizada a portas fechadas. Isso obscurece o conhecimento sobre preços e práticas, dificultando a avaliação do progresso passado, presente e futuro. Mas não estamos culpando as empresas por operar dentro das estruturas de incentivos que recebem.
Em vez disso, as equipes do GFI (incluindo nossas afiliadas na Índia, Israel, Brasil, APAC e Europa) trabalharam incansavelmente para aumentar a alocação de financiamento público para carnes cultivadas e outras proteínas alternativas. Uma parte integral deste trabalho envolveu o estabelecimento do Edital de Pesquisa do GFI em 2018. Graças a um grupo de doadores generosos, o programa concedeu mais de US$ 7 milhões em pesquisa de acesso aberto sobre carne cultivada. Esses fundos proporcionaram a pesquisadores pioneiros uma oportunidade de demonstrar o valor da pesquisa em carne cultivada, que, consequentemente, começou a abrir novas fontes de financiamento do governo necessárias para realmente construir um ecossistema de pesquisa e treinamento.
Em 2020, a National Science Foundation concedeu aos pesquisadores da UC Davis uma bolsa de US$ 3,55 milhões para a pesquisa de carnes cultivadas. Quase um ano depois, o Departamento da Agricultura dos Estados Unidos conceceu um financiamento de US$ 10 milhões para estabelecer o Instituto Nacional de Agricultura Celular na Universidade Tufts. Em 2020, o governo de Cingapura destinou US$ 144 milhões para seu programa de P&D Food Story, com parte desses fundos dedicados à pesquisa de carnes cultivadas. Em 2021, o Instituto de Tecnologia de Bioprocessamento A*STAR anunciou a criação do Centro de Inovação para Atividades Bancárias Sustentáveis e Produção de Carnes Cultivadas (CRISP Meats). Projeto de pesquisa de vários milhões de dólares também estão em andamento no Japão, com apoio na China também se tornando disponível. Ao longo do caminho, os pesquisadores financiados pelo edital de pesquisa do GFI também criaram empresas, formaram consórcios de pesquisa, aconselharam grupos de alunos no campus e prepararam um número crescente de cientistas para construírem carreiras na área.
Esses financiamentos públicos servem como um sinal importante de que a carne cultivada está se tornando uma disciplina de pesquisa legítima. Um ciclo de feedback positivo e fortalecedor está começando a surgir, o que levará a mais pesquisadores interdisciplinares em carne cultivada. Esses pesquisadores então enviarão mais inscrições a mais agências de financiamento, liberando mais bolsas para financiar mais pesquisas e treinar mais cientistas e engenheiros.
Pode parecer contraintuitivo, mas uma grande parte da razão pela qual estou otimista em superar os desafios que a indústria da carne cultivada enfrenta é por causa do nascimento de seu ecossistema de pesquisa. Estamos longe de esgotar a criatividade dos pesquisadores que vão entrar no campo. Além disso, a maior parte do capital privado levantado até agora ainda não foi colocado em operação. Conforme observado acima, menos da metade do investimento privado no campo foi alocado antes de 2021, o que significa que as startups ainda estão contratando com fervor os pesquisadores para executar os planos de P&D financiados por esses investimentos.
O que acontece quando o nível atual de cientistas e engenheiros talentosos trabalhando com carne cultivada aumenta em 1000 vezes no mundo todo? Esse movimento está apenas começando.
É fácil esquecer, mas o motivo de estarmos aqui hoje é em grande parte porque os investidores otimistas começaram – e continuam – a fazer apostas há seis anos.
Essas apostas que somam mais de US$ 1 bilhão até o momento fizeram mais do que apenas financiar cerca de sessenta startups promissoras – elas iniciaram uma indústria e incentivaram a ajuda adicional a vir de várias direções. Existem agora dezenas de startups auxiliares que visam atender a indústria B2B. Reguladores globais estão estabelecendo caminhos regulatórios. Empresas multinacionais de alimentos, ingredientes e produtos químicos estão investindo e firmando parcerias. Os legisladores estão ouvindo e aprendendo, e o entusiasmo do público em geral está crescendo (por exemplo, veja esta comunidade do Reddit com mais de 60.000 entusiastas).
Mas há motivos para acreditar que ainda mais ajuda está a caminho. Embora a tecnologia sendo implementada atualmente na indústria seja herança do setor biofarmacêutico, esse legado tecnológico não é adequado para o propósito de criar produtos de carne cultivada. As células usadas para criar medicamentos e vacinas biológicas nunca foram o produto, elas estavam simplesmente servindo como plataformas de produção.
Entretanto, no campo da medicina regenerativa as células são o produto. E os esforços globais para criar uma indústria de manufatura avançada para células, tecidos e órgãos para a medicina humana estão agora bem encaminhados. Embora seus regimes de preços e escalas finais sejam diferentes, muitos dos principais desafios que a indústria da medicina regenerativa enfrenta são compartilhados com a carne cultivada.
Os esforços para enfrentar desafios compartilhados não ocorrerão no vácuo. Sucessos, fracassos e tecnologias criadas para os campos de medicina regenerativa e carne cultivada serão cada vez mais compartilhados por meio de publicações, desenvolvimento de propriedade intelectual e discussões públicas nos próximos anos.
Essas indústrias estão cada vez mais aproveitando as oportunidades de colaboração e compartilhamento de conhecimento – por exemplo, o GFI entrou para o Advanced Regenerative Manufacturing Institute no início deste ano para explorar essas sinergias.
Da mesma forma, melhorias contínuas em biologia sintética, bioinformática, inteligência artificial, automação e outros setores de ciências da vida podem encontrar aplicações igualmente importantes nesses campos.
A aprovação do produto de frango cultivado da Eat Just em Cingapura foi um marco monumental na jornada da carne cultivada. Mas tire o zoom e você verá que a indústria de carne cultivada representa 0,00% do mercado – sim, no cenário global, a indústria é menos do que um erro de arredondamento. E esse produto aprovado? Está sendo vendido com prejuízo por apenas dois restaurantes em um único país.
De acordo com a McKinsey, o mercado global de carnes e frutos do mar deve atingir 531 milhões de toneladas até 2030 e continuar a crescer no futuro previsível. Isso significa que milhões de toneladas de células animais cultivadas precisarão ser produzidas para capturar apenas uma fração de um por cento do mercado em crescimento, exigindo algo entre 11 a 22 vezes a capacidade volumétrica atual da indústria farmacêutica global. É uma tarefa monumental, visto que a indústria está atualmente produzindo carne cultivada na escala do quilograma.
Existem desafios reais associados à redução de custos e ao alcance das escalas necessárias para produzir quantidades significativas de carne cultivada. Existem incertezas adicionais no cenário regulatório, a probabilidade de os consumidores adotá-la e se a carne cultivada realmente substituirá o consumo de carne convencional. Para muitos, essas razões explicam porque a carne cultivada ainda permanece no reino da ficção científica, e não na realidade.
Esses fatores, juntamente com a urgência da crise climática, podem tornar mais fácil se manter pessimista e talvez pensar em gastar dinheiro e tempo em outro lugar. Mas, a longo prazo, o futuro é decidido por otimistas. E um vislumbre do futuro da indústria de carnes pode ser obtido a partir da atual transição que está ocorrendo no setor de energia.
A Lei de Amara afirma que tendemos a superestimar o efeito de uma tecnologia no curto prazo e subestimar seus efeitos no longo prazo. As tecnologias costumam passar por períodos de expectativas infladas, um vale de desilusão e, eventualmente, um processo gradual que leva a sua difusão pela sociedade. De aviões a blockchains, essas tendências qualitativas tendem a se manter, mas quantificar a linha do tempo e a taxa de adoção de tecnologia é difícil e depende de muitas variáveis. Olhar para outros setores fornece uma visão sobre como essas variáveis influenciam previsões.
Muitas indústrias experimentaram trajetórias semelhantes, mas para ilustrar alguns paralelos importantes, a indústria solar parece apropriada. Como Max Roser, ou Our World in Data, descreve, em seus primeiros dias, com preços exorbitantes, os módulos solares fotovoltaicos foram evitados, mas acabaram ganhando espaço ao atender a indústria de satélites. À medida que mais módulos fotovoltaicos eram produzidos para espaçonaves, seus custos diminuíam, permitindo o acesso em mercados muito maiores e mais convencionais na Terra. Isso criou um ciclo de feedback positivo que resultou em um declínio de 99,6% nos custos da energia solar fotovoltaica desde 1976, com declínios concomitantes nos preços da energia solar.
Os cronogramas reais dessas quedas de preço foram contra todas as previsões. Acontece que, para muitos setores, cada duplicação da capacidade de fabricação resulta em um declínio previsível nos custos, conhecido como curva de experiência. Mas essas taxas são difíceis de prever. Para a energia solar é de 20%, para energia eólica on shore é de 23% e para a energia eólica off shore é perto de 10%.
Então, o que pode ser dito sobre a linha do tempo e as curvas de experiência de carne cultivada? Embora alguns tenham tentado ilustrar quedas nos preços do produto final com base em números citados na mídia (por exemplo, aqui e aqui), ainda é muito cedo para fazer previsões. Os dados são muito escassos e as escalas muito pequenas par aproximar as curvas de experiência.
No entanto, como a indústria solar, a indústria de carne cultivada tem uma oportunidade crucial de ganhar fôlego para escala através dos nichos de carne premium e especiais, e como um ingrediente para melhorar os aspectos sensoriais de produtos à base de plantas. Esses mercados não são pequenos. Por exemplo, o mercado de carnes premium e especiais pode ser de aproximadamente seis milhões de toneladas anuais. Se estimarmos a capacidade volumétrica da indústria de carnes cultivadas em 2022 em aproximadamente 500 toneladas, serão necessárias treze duplicações para satisfazer a demanda por carnes premium e especiais. É aqui que o fabricantes de carne cultivada aperfeiçoarão seu ofício nos próximos anos e curvas de experiência mais confiáveis começarão a surgir.
Embora os dados mencionados anteriormente tenham apresentado reduções significativas de custo em meios de cultura de células que estão bem encaminhados, há mais incerteza para os custos dos biorreatores. E como os módulos fotovoltaicos solares há três décadas, o aumento da escala necessária da fabricação de biorreatores pode desbloquear curvas de experiência que fazem as suposições usadas nas TEAs de hoje parecerem altamente imprecisas.
Nos últimos cinco anos, a energia solar reduziu todas as formas de energia de combustível fóssil na maioria das regiões e espera-se que seus preços continuem caindo. Em 2019, a energia solar respondia por aproximadamente por um cento da energia global e dois por cento da eletricidade global.
Seria um descuido não mencionar que chegar a apenas 2% do uso global de eletricidade exigiu investimentos públicos e privados maciços, incentivos fiscais para infraestrutura, subsídios para estimular a adoção precoce e muita educação do consumidor. A mesma escala de investimento e esforço provavelmente será necessária para a carne cultivada alcançar penetração de mercado semelhante.
Atualmente, são poucos os que duvidam de que a energia solar será uma parte significativa de nosso futuro descarbonizado ou que esses investimentos não valem a pena. Mas a energia solar por si só não é uma panaceia para nossa dependência de combustíveis fósseis. Pesquisa, manufatura e políticas bem estruturadas precisam ser replicadas em fontes de energia sustentáveis. Solar, eólica, hidroelétrica, geotérmica e nuclear juntas devem compor nossa matriz energética futura, e devem fazê-lo no contexto de engenharia mais inteligente e mudanças de consumo que melhorem a eficiência energética geral.
Da mesma forma, a carne cultivada por si só não é uma panaceia para nossa dependência da produção de carne animal industrializada (e nunca foi). Carne vegetal, alimentos derivados da fermentação, carne cultivada, uma mudança abrangente em direção a dietas ricas em vegetais e outras soluções de produção e consumo de alimentos com eficiência de recursos são elementos importantes de uma estratégia holística para reduzir a pegada ambiental de nosso sistema alimentar global.
Nos últimos meses, o número de políticas governamentais locais e nacionais para eliminar os veículos com motor de combustão interna (ICE) aumentou drasticamente. Mas seria difícil creditar essas políticas apenas à visão de políticos virtuosos e alinhados à missão. Em vez disso, o que está por trás da motivação deles é a longa e árdua estrada da Tesla. A Tesla foi pioneira na adoção de veículos elétricos e tornou-se mais valiosa do que todas as outras montadoras líderes combinadas e, ao fazer isso, forçou a mão de fabricantes de automóveis e políticos a adotar veículos elétricos.
Devemos dar crédito à lista crescente de cidades e nações liderando o caminho, mas essas políticas também parecem atrasadas. Conforme afirma Ramez Naam, é como se todo novo projeto de lei que visa habilitar tecnologias climáticas como veículos elétricos ou solares já é inadequado dada a urgência das mudanças climáticas.
Apesar disso, cada passo político na direção certa permite que essas tecnologias cresçam mais, diminuam os custos e aumentem a adoção do consumidor, o que leva a políticas mais ambiciosas e fortalece esse ciclo positivo.
No contexto do consumo de carne, alguns defendem que os esforços deveriam focar nas ações políticas populares ou em persuadir os consumidores a mudar as dietas – por que tentar buscar a carne cultivada? Mas as lições das indústrias de veículos solares e elétricos demonstram que na raiz da mudança social frequentemente está uma nova tecnologia que representa uma ameaça legítima ao mercado estabelecido e uma alternativa atraente para os consumidores. Sem essa fundação, a persuasão e os esforços na base encontrarão uma forte resistência do consumidor e uma escalada política íngreme.
É aí que entram as proteínas alternativas
Como a Tesla com veículos elétricos, empresas como Impossible Foods e Beyond Meat demonstraram que os consumidores estão dispostos a fazer uma troca (pelo menos parcialmente) da carne convencional se uma alternativa viável for apresentada. Esta demonstração catalisou uma enxurrada de novas startups usando tecnologias baseadas em plantas, fermentação e cultivo de células para criar carne sem o animal (coletivamente, a indústria de proteína alternativa).
A indústria de proteína alternativa já começou a surgir como uma oportunidade de mercado em crescimento, com níveis crescentes de demanda do consumidor. Apesar dos produtos vegetais existentes ainda serem vendidos com preço premium e a maioria dos produtos derivados de fermentação e cultivados ainda estarem em desenvolvimento, a indústria de carne estabelecida já adotou esta nova categoria lançando seus próprios produtos alternativos de carne ou investindo em empresas de proteínas alternativas.
O progresso da indústria de proteínas alternativas até agora tem sido financiado predominantemente por capital privado e trabalho árduo em um pequeno número de empresas, ao invés de apoio ao investimento público. Para cada categoria alternativa de proteína competir em preço, sabor e conveniência (o que se resume à acessibilidade e, em última análise, escala) com a carne convencional, pode ser necessário apoio público significativo na mesma medida demonstrada em outras indústrias.
Os primeiros sinais apontam para um ciclo de feedback técnico-político que está agora em movimento favorável à indústria de proteínas alternativas, semelhante ao que levou as tecnologias de veículos solares e elétricos aos seus pontos de inflexão.
Esta é uma aposta que vale a pena.
O status quo da indústria de agricultura animal convencional traz um enorme risco existencial em termos de mudança climática, degradação ambiental, risco de pandemia e resistência a antibióticos. Os custos futuros de cada uma dessas ameaças totalizarão trilhões de dólares e muitas vidas humanas e animais. Qualquer tecnologia que tenha uma chance de mitigar seriamente essas ameaças deve ser desenvolvida.
A carne cultivada é uma peça importante no conjunto de tecnologias de proteína alternativa que tem chance de fazer exatamente isso. Os desafios estão apenas começando a ser vistos com clareza e os caminhos potenciais para o sucesso estão apenas começando a ser testados. Um valor comparativamente pequeno de investimento trouxe carne cultivada para o mercado em seis anos, e a maior parte desse investimento ainda não foi feito.
Quando diminuímos o zoom e temos uma visão panorâmica da jornada alimentar global, é importante reconhecer os caminhos que já trilhamos e que nos trouxeram aqui e agora. Está claro que esses mesmos caminhos e escolhas não são mais viáveis se quisermos alimentar 10 bilhões de pessoas, alcançar uma economia de emissões neutras ou negativas e liberar terras e águas suficientes para recuperação e restauração em escala planetária. Com tudo o que está em jogo, a busca para reimaginar a agricultura moderna é uma aposta que vale a pena.
Imagem do cabeçalho cortesia da Upside Foods.
Com o objetivo de alavancar o desenvolvimento do mercado de proteína cultivada, o The Good Food Institute Brasil (GFI Brasil) assessorou a JBS na sua entrada neste segmento. O GFI Brasil ofereceu apoio estratégico, tecnológico, regulatório e conexões com cientistas e startups para a companhia, que irá destinar US$ 100 milhões nesta nova frente, consolidando um trabalho de análise mercadológica iniciado há três anos.
“Esse é um dos maiores fatos que já ocorreram nesse setor. O investimento é de longe o maior já feito nessa área por uma empresa tradicional de carnes, e um dos maiores mesmo dentre as startups, que já captam recursos há anos. Com esse movimento, a JBS mostra que está disposta a investir pesado para chegar na liderança da produção de carne cultivada e imediatamente muda o cenário competitivo global. Cada vez mais temos uma certeza: o futuro da produção de alimentos com base tecnológica terá, com certeza, protagonismo brasileiro”, afirma Raquel Casselli, gerente de engajamento corporativo do GFI Brasil
Com esse recurso, a JBS, líder global em proteínas e segunda maior empresa de alimentos do mundo, firmou acordo para aquisição do controle da empresa espanhola BioTech Foods, prevendo o investimento na construção de uma nova unidade fabril na Espanha para dar escala à produção. Além da aquisição, a JBS também anuncia a implantação do primeiro Centro de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) em Biotecnologia e Proteína Cultivada do Brasil.
Fundada em 2017, a BioTech Foods é uma das líderes no desenvolvimento de biotecnologia para a produção de proteína cultivada, contando com o apoio do governo espanhol e da União Europeia. A empresa opera uma planta-piloto na cidade de San Sebastián e tem a expectativa de alcançar a produção comercial em meados de 2024, com a construção dessa nova unidade fabril. O investimento na nova instalação é estimado em US$ 41 milhões.
Pelos termos da transação, a JBS se torna a acionista majoritária da BioTech Foods. A operação possibilita que as duas empresas unam forças para acelerar o desenvolvimento do mercado de proteína cultivada. A companhia brasileira passa a ter acesso à tecnologia e à produção de proteínas da BioTech Foods, que, por sua vez, terá à disposição a capacidade de processamento industrial, a estrutura de marketing, know-how para o desenvolvimento de produtos e os canais de venda da JBS para colocar o novo produto no mercado.
“Esta aquisição reforça nossa estratégia de inovação, desde como desenvolvemos novos produtos até como comercializamos, para atender à crescente demanda global por alimentos. Unindo o conhecimento tecnológico com nossa capacidade de produção, seremos capazes de acelerar o desenvolvimento do mercado de proteína cultivada”, afirma Gilberto Tomazoni, CEO Global da JBS. A aquisição da BioTech Foods ainda está sujeita à confirmação da autoridade de investimento estrangeiro na Espanha, entre outras condições usuais a esse tipo de operação.
Quando estiver em fase comercial, a proteína cultivada chegará inicialmente aos consumidores na forma de alimentos preparados, como hambúrgueres, embutidos, almôndegas, entre outros. A tecnologia tem potencial não apenas para a produção de proteína bovina, mas também para a de frangos, suínos e pescados.
O movimento na Europa é complementado pelo Centro de Pesquisa em Proteína Cultivada no Brasil. Previsto para ser inaugurado em 2022, o centro incluirá na segunda etapa uma planta que irá ocupar uma área de 10 mil metros quadrados. Liderado pelos doutores Luismar Marques Porto e Fernanda Vieira Berti, a iniciativa contará com cerca de 25 pesquisadores e vai trabalhar no desenvolvimento de tecnologias de ponta para a indústria de alimentos.
Com o investimento no Centro de P&D, a JBS pretende desenvolver novas técnicas que acelerem os ganhos de escala e reduzam os custos de produção da proteína cultivada, antecipando sua comercialização no mercado. “Estamos ampliando nossa plataforma global para atender às novas tendências de consumo e ao crescimento da população global. A aquisição da BioTech Foods e o novo centro de pesquisa colocam a JBS numa posição única para avançar no setor de proteína cultivada”, complementa Tomazoni.
“Nós, do GFI, ficamos muito felizes em termos sido chamados para colaborar no projeto de proteína cultivada da JBS. Nosso objetivo é sempre facilitar a entrada de novos agentes para que o mundo das proteínas alternativas se desenvolva mais rápido. Tivemos o privilégio de ver a empresa potencializar esses recursos para buscar a liderança da área, gerando uma das estratégias mais arrojadas da história do setor. Foi uma honra ver esse projeto nascer e aprender com o time de executivos da JBS durante o processo de planejamento”, afirma Gustavo Guadagnini, presidente do GFI Brasil.
Texto: Vinícius Gallon
Revisão: Gustavo Guadagnini
Em dezembro de 2020, um restaurante localizado próximo ao rio Singapura criou um marco na forma com que o mundo deve passar a consumir carne nas próximas décadas. Isso porque, pela primeira vez, uma empresa conseguiu autorização para comercializar a carne cultivada, uma forma de produção do alimento que parte da reprodução celular e evita o abate animal. Em pouco tempo, a técnica aprimorada desde 2013 ganhou força e agora conta com produtos capazes de mimetizar a carne de frango, boi, camarão e até o leite materno. Somente no ano passado, de acordo com levantamento do The Good Food Institute (GFI), o setor recebeu US$ 360 milhões em investimentos, seis vezes mais que em 2019.
Com o mercado aquecido em pelo menos dez países, a possibilidade de se produzir uma carne de cultivo celular movimentou startups e grandes empresas – são ao menos 70 mapeadas pelo GFI. Elas dão o tom das diversas demonstrações do produto que tomaram restaurantes ao redor do mundo. O Brasil segue na esteira deste processo e desponta iniciativas que preparam um terreno inevitável para tornar a carne cultivada um produto básico de consumo. Uma previsão da consultoria alemã AT Kearney, por exemplo, aponta que 35% da carne consumida no mundo deverá ser produzida a partir da reprodução celular em 2040.
Uma pesquisa do GFI mostrou que, em 2020, metade dos brasileiros diminuiu o consumo de carne, especialmente por motivos relacionados à saúde e a restrições médicas. Neste ano, com a alta dos preços dos alimentos no país e a crise global provocada pela pandemia de Covid-19, o consumo ficou abaixo do recorde registrado em 2019 (7,93 milhões de toneladas), caindo para 7,73 milhões de toneladas, segundo informações do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
No entanto, é fato que o consumo de proteína animal tem crescido, sobretudo na África e na Ásia. De acordo com a USDA, em 2021, o consumo mundial de carne bovina deve chegar a 60,04 milhões de toneladas, representando um crescimento de 1,6% em relação a 2020 (59,06 milhões de toneladas). Para se ter uma ideia, desse total, 10,08 milhões de toneladas serão consumidos pelos chineses, representando uma alta de 6,3% em relação a 2020 (9,48 milhões de toneladas), atrás apenas dos Estados Unidos, país que mais consome carne bovina no mundo (12,52 milhões de toneladas em 2021).
Para seguir alimentando a população, que deve chegar a quase 10 bilhões de pessoas em 2050, a ONU estima que será necessário aumentar a produção de alimentos em 70%. Neste caminho, produtos como a carne cultivada se tornam uma necessidade para garantia da segurança alimentar, em especial porque reduz o impacto da produção de alimentos no meio ambiente.
A pauta é urgente: o último Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas mostrou que os impactos da ação humana no meio ambiente podem ser irreversíveis. Na contramão deste processo, estudo encomendado pelo GFI e GAIA mostra que a carne cultivada pode derrubar a pegada de carbono em até 80%. Pesquisas anteriores também revelam um menor uso de água azul (redução de 51% a 78%) e menor poluição ao ar (redução de 29% a 93%) na comparação com a carne convencional.
Contudo, apesar da urgência climática, o que realmente deve garantir que a carne cultivada chegue aos restaurantes e supermercados e ganhe o público brasileiro e global, é a experiência sensorial idêntica ou ainda melhor que a promovida pela carne animal, além do preço competitivo ou inferior à carne tradicional.
De acordo com a especialista de ciência e tecnologia do GFI Brasil, Dra. Amanda Leitolis, o GFI trabalha para entender essas e outras demandas dos consumidores e da indústria, contornando os desafios que esta tecnologia apresenta. “Na área de carne cultivada, mas não somente nela, nosso papel também é o de contribuir para estruturar e articular o ecossistema de inovação”, afirma. “Conectando os atores dessa cadeia, com habitats de inovação, investidores e parceiros”.
Entenda a tecnologia
Um artigo publicado em 2019 pela doutora em filosofia da biologia Cor van der Weele indicou que, do ponto de vista comportamental, quanto mais a carne cultivada for conhecida e normalizada, mais estranho será consumir a carne convencional. Isso significa que uma carne produzida a partir do cultivo celular pode parecer distante da nossa realidade, mas o processo é mais comum do que se imagina. De modo geral, a indústria de alimentos já está acostumada a usar biorreatores na cadeia produtiva, por exemplo, como na produção de iogurtes, queijos e cervejas.
O processo de produção da carne cultivada é simples. Primeiro, se retira uma célula do animal vivo por biópsia ou a partir de uma célula embrionária. Ela é, então, alimentada com nutrientes e fatores de crescimento em uma placa de cultivo fora do animal, de modo que se multiplica em meio a um substrato até formar um tecido completo. “O crescimento destas células em em um ambiente controlado é o que chamamos de cultivo celular”, explica Leitolis. “Primeiro se coleta e expande essas células e se coloca isso em uma estrutura para fazer a engenharia de tecidos, que é construir o tecido de novo”. Esta estrutura usada como suporte para as células é chamada de scaffold.
Tudo é feito em biorreatores, que funcionam como um vaso onde a célula poderá se multiplicar. A tecnologia é conhecida, já que importa conhecimento da biomedicina, com os procedimentos podendo ser feitos em laboratórios de engenharia tecidual.
Retirada das células
A biópsia é feita por agulha ou incisão, com prós e contras nos dois métodos. A biópsia por agulha gera pouco ou nenhum desconforto para o animal, mas retira pouca quantidade de células, exigindo várias amostragens. Já a incisão retira uma amostra maior de tecido, exigindo apenas uma amostragem, mas é mais agressiva para o animal, exigindo maior uso de analgésicos e sedativos para garantir o seu bem estar. Em ambos os casos, a célula pode dar origem a uma linhagem, ou seja, pode ser usada na produção de vários tecidos ao longo do tempo. Na sequência, a amostra será diferenciada, de modo a dividir o tecido muscular do adiposo.
“O que faz essa célula, quando se divide, ir em direção a determinado tecido, depende do microambiente, o material e o meio de cultura que faz sua nutrição” explica o CEO da Tubanharon e engenheiro químico Dr. Luismar Porto. A distribuição celular vai definir gosto, aparência e maciez da carne.
Meio nutritivo
O meio nutritivo funciona a base de água, nutrientes, aminoácidos e hormônios. Amanda explica que um dos métodos mais conhecidos de suplementar este substrato utiliza o soro fetal bovino como meio para o desenvolvimento celular, mas as empresas procuram cada vez mais eliminar esta forma de cultivo e evitar o abate animal em qualquer etapa. A startup israelense Aleph Farms é uma das gigantes no setor que já utiliza um meio nutritivo 100% vegetal. Nesse caso, a suplementação é feita de forma sintética. O método permite o crescimento celular sem a necessidade de se usar antibióticos, como acontece na cadeia pecuária tradicional.
“Toda vez que apostamos contra a tecnologia, nós perdemos”, aposta Luismar Porto. “Com os investimentos necessários, é uma questão de tempo até não termos mais esse problema como um fator limitante”, conclui. O processo de cultivo celular, por exemplo, já existe há mais de cem anos. A carne de cultivo celular é apenas uma aplicação diferente de uma tecnologia já desenvolvida.
Estrutura
Já o scaffold funciona como uma estrutura de ancoragem da célula e atua como a parte mais fibrosa da carne, dando um suporte mecânico. Ele pode ser de origem vegetal e deve ser comestível, como a celulose, a proteína da soja ou micélios fúngicos. Tudo isso permite que o produto final se pareça ao máximo possível com a carne tradicional. Segundo Porto, em alguns casos é possível, inclusive, construir um tecido mais proteico e mais saudável que o natural.
“Nós vamos começar imitando alguns cortes da carne. Provavelmente depois vamos esquecer isso e teremos um alimento que é mais nutritivo, seguro, sustentável e muito mais amigo do meio ambiente”, aponta. Amanda Leitolis completa que a tríade célula, estrutura e moléculas bioativas podem ser trabalhadas em diferentes combinações para se produzir uma carne mais magra, por exemplo, ou com mais vitaminas, como a B12. “Conseguindo controlar o ambiente eu consigo controlar o produto final”, afirma.
Novos produtos
A diversidade de cortes e diferenciação de células tem apresentado resultados bem sucedidos ao redor do mundo e que devem chegar ao Brasil. A tecnologia caminha a passos largos para encontrar alternativas cada vez mais similares à carne tradicional. Vale lembrar que os novos produtos recebem autorizações de agências nacionais para comercialização, ou seja, são seguros para consumo. Conheça alguns exemplos lançados em eventos privados de degustação:
Com a quantidade de possibilidades, em comum, as empresas pioneiras neste mercado costumam apresentar o mesmo desafio: produzir em larga escala e baratear os insumos para diminuir o custo final dos produtos.
No Brasil, startups se preparam
Luismar Porto foi professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química da Universidade Federal de Santa Catarina por anos. Aposentado, hoje se dedica aos estudos iniciais em sua consultoria para trazer a tecnologia ao Brasil. A ideia de investir no modelo começou quando um vídeo de uma aula sua sobre carne cultivada foi publicado no Youtube e teve grande repercussão. “Eu venho falando sobre a possibilidade de se desenvolver a carne cultivada há dez, quinze anos. A tecnologia parte da engenharia de biomateriais e biomédica, dedicada à criação de tecidos humanos”, conta.
Foi também o que aconteceu com a Dra. Bibiana Matte, fundadora da startup de carne cultivada Ambi Realfood. Por meio de um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul, Matte se tornou a primeira pesquisadora a receber investimentos para desenvolver o produto em uma startup brasileira. Doutora em Patologia Bucal, é também diretora científica da Núcleo Vitro, empresa que estuda produtos para a saúde utilizando o modelo de pele equivalente. “Dentro disso temos um leque bem grande de estudos indo para a parte de pele, de vírus, e ano passado, querendo pensar em outras áreas que a nossa expertise de engenharia de tecidos e de cultivo de células poderia atuar, me debrucei sobre o assunto da carne cultivada”, afirma.
Hoje, com uma equipe multidisciplinar que inclui médicos veterinários, engenheiros de biotecnologia e de processos, biomédicos e profissionais da comunicação, o objetivo de Matte é se tornar a primeira startup a entregar um produto à base de carne cultivada no Brasil. Ela ressalta o apoio que o GFI deu nos primeiros passos da startup e na consolidação da tecnologia no Brasil. “Nós precisamos trabalhar as nossas próprias tecnologias. Eu não quero que daqui 20 anos a gente esteja importando, porque a gente tem uma tecnologia nacional. O Brasil é muito relevante no cenário de crescimento de animais como um todo para consumo e essa busca por outras alternativas faz sentido para nós”.
Gigantes do setor também prometem acompanhar de perto a evolução da tecnologia no Brasil. É exemplo a parceria celebrada pela multinacional BRF e a Aleph Farms, com apoio do GFI.
Pesquisa acelera inovação
Segundo Dra. Amanda Leitolis, parte do trabalho da área de ciência e tecnologia do GFI é focado em contribuir com o desenvolvimento de pesquisas de alto impacto e em áreas pouco exploradas, o que ajuda a antecipar os desafios da tecnologia e promover novas soluções. Entre as ações estão a moderação de um diretório de pesquisa, o financiamento a pesquisas de acesso livre e a realização de cursos e formação de profissionais com conhecimento em proteínas alternativas.
No Paraná, essa expertise contribuiu diretamente para a oferta da primeira disciplina de Introdução à Zootecnia Celular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica a professora Dra. Carla Molento, coordenadora do Laboratório de Bem-estar Animal. “Nós temos como oferecer essa disciplina por causa da parceria com o GFI”, diz. “O trabalho que o GFI faz internacionalmente e no Brasil constitui excelência na reunião de conhecimentos para ensino”.
A disciplina partiu de uma série de estudos realizados por pesquisadores ligados ao laboratório, pioneiros em trazer a perspectiva sobre carne cultivada aos espaços de ensino, pesquisa e extensão da universidade. Profa. Carla Molento analisa que a proposta é entender a nova cadeia de proteção de alimentos como zootecnia celular. “De início quem está envolvido com a cadeira convencional da carne tem uma certa resistência, mas na medida em que percebe que é uma forma adicional de produzir alimentos para consumo humano, inclusive de origem animal, mas de uma forma inovadora, acaba sendo parceiro”, aponta.
O grupo inclui profissionais de diversas áreas, inclusive da administração, e tem tido sucesso em publicar questões ligadas ao desenvolvimento dessa cadeia de produção, para compreender as etapas, cenários e impactos sociais da indústria de proteínas alternativas a partir da proteção animal.
A disciplina estuda o motivo da transição nos sistemas de produção de alimentos, a relação com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a simulação de possíveis novos produtos e as formas que a carne cultivada pode contribuir com a segurança alimentar no planeta. “Nossa intenção é contribuir para que outras universidades também possam oferecer”, conclui a professora.
Para ela, é fundamental que o Brasil se torne mais hábil para conversar sobre esse tema, ultrapassando concepções que nem sempre correspondem à realidade. “Outros alimentos que estamos acostumados a comer já são resultantes de processos de crescimento em reatores. O que estamos vendo é que as carnes vegetais que já estão no mercado estão ultrapassando todas as previsões em termos de aceitação e rapidez de seu crescimento. O mesmo deve acontecer com a carne cultivada”, avalia.
Amanda Leitolis conclui lembrando que o Brasil tem a tradição da tecnologia e um ambiente científico propício. “O Brasil é um dos maiores produtores de publicação científica do mundo e a maior parte da nossa pesquisa está concentrada em ciência vegetal e animal. É o momento certo para expandir esse tipo de tecnologia”.
Texto: Victoria Gadelha
Revisão: Vinícius Gallon
Novos estilos de vida mais conscientes e preocupados com a saúde e o meio ambiente têm estimulado o surgimento de novos gêneros alimentares, como o flexitarianismo, em que o consumidor diminui o consumo de produtos de origem animal sem interrompê-lo completamente. Enquanto as alternativas à base de plantas já possuem um lugar consolidado na dieta dos veganos e vegetarianos, os alimentos híbridos (blended, em inglês) vieram para atingir um público que se importa com saúde e sustentabilidade mas não quer abrir mão da experiência sensoral e da nutrição associadas à carne animal. Incorporar vegetais em pratos tradicionalmente feitos somente de carne, tornando-os híbridos, é uma forma de mudar a dieta dos consumidores sem a necessidade de grandes mudanças no estilo de vida.
Em vez de “plant-based”, é “plant forward”: esse termo guarda-chuva inclui qualquer dieta ou padrão alimentar de quem se compromete a comer mais vegetais e menos carne, mas não busca eliminar todos os produtos de origem animal nem se rotular de forma mais estrita. Os motivos, de acordo com o relatório “The Power of Meat”, lançado em 2020 pela The Food Industry Associaton (FMI), incluem o fato desses produtos facilitarem uma maior ingestão de vegetais e proporcionarem uma maneira mais saudável de comer carne.
Além de serem melhores para a saúde do consumidor (por conterem menos gorduras saturadas, colesterol e sódio, mais fibras e vitaminas) os produtos híbridos também são melhores para o meio ambiente, uma vez que a pecuária é uma das atividades que mais poluem, desmatam e emitem gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo o World Resources Institute (WRI), os norte-americanos comem 10 bilhões de hambúrgueres todos os anos. De acordo com o instituto, se um terço da carne em cada hambúrguer fosse substituída por cogumelos, seria economizada uma quantidade de água equivalente ao uso anual de água doméstica de 2,6 milhões de americanos. Em relação à poluição atmosférica, seria o equivalente a tirar 2,3 milhões de carros – e suas emissões de CO2 – das ruas por ano. Se tratando de terras, o WRI relata que o “blend” nos hambúrgueres reduziria o uso global de áreas agrícolas em mais de 36.260 km2, uma área que equivale a 4,395 campos de futebol.
Fora o impacto ambiental, a estratégia de incrementar vegetais em alimentos de origem animal também pode reduzir os custos de produção e comercialização de vários produtos. No caso da carne cultivada, por exemplo, misturar uma porcentagem de vegetais nas células animais é essencial para baratear sua produção que, apesar de já ser uma realidade, enfrenta desafios relacionados à redução de custos, aumento de escala e regulamentação legal. O único lugar no mundo em que a carne cultivada já está aprovada para venda é em Cingapura. No final de 2020, a marca Eat Just lançou sob o nome de GOOD Meat o primeiro frango cultivado híbrido, usando 70% de frango cultivado e 30% de base vegetal.
Enquanto a demanda por carne cresce, ao mesmo tempo em que a demanda por alternativas vegetais também, as empresas que produzem alimentos híbridos se posicionam bem entre as duas categorias. Nos últimos dois anos, gigantes do mercado embarcaram na tendência e adicionaram linhas híbridas aos seus catálogos de produtos. A Tyson, maior processadora de carne dos EUA, lançou pela marca Aidells Whole Blends salsichas e almôndegas de carne com misturas vegetais, como frango com espinafre e queijo feta ou frango com abacaxi desidratado. Já a Applegate criou um hambúrguer híbrido feito de carne de vaca com couve-flor, espinafre, lentilha e abóbora, e outro feito de peru com batata-doce, feijão branco, couve e cebola. Por utilizarem menos carne animal, eles conseguiram utilizar um produto “grass fed”, ou seja, de animais que foram alimentados naturalmente no pasto, sem o uso de rações com grãos e remédios. Cada hambúrguer da marca (106g) entrega por volta de 1⁄3 de xícara de vegetais.
A Lisanatti Foods foi além e lançou um queijo híbrido: a mozzarella vegetal, à base de amêndoas, é misturada com caseína (proteína derivada do leite), permitindo que o queijo vegetal imite bem a textura do queijo animal. Dessa forma, o produto é apto para vegetarianos, flexitarianos e para o consumidor comum, mas não para quem é vegano ou tem alergia à proteína do leite de vaca (APLV). A Misfit Foods, que até 2019 era uma empresa que produzia sucos prensados a frio a partir de frutas imperfeitas (que seriam jogadas fora), decidiu entrar no ramo das carnes híbridas. Motivada pela urgência ambiental aliada à crescente demanda do mercado, a marca criou produtos misturados (como hambúrguer bovino com beterraba ou salsicha de frango com cenoura e curry) que vêm numa proporção de 50 a 60% carne e 40 a 50% vegetais, oferecendo ao consumidor um bom “empurrão” para longe da carne, mesmo enquanto ele come carne.
A Perdue, que está entre as principais empresas de grãos e de processamento de frango, peru e porco nos EUA, lançou também em 2019 a Chicken Plus, uma linha voltada para o público infantojuvenil que oferece nuggets híbridos, feitos de frango com couve-flor, grão de bico e proteínas vegetais. Essas formulações, feitas com ingredientes naturais, permitem que no mínimo 1⁄3 da carne animal seja substituída pela proteína à base de plantas, aumentando tanto o rendimento quanto o valor nutricional do produto (adicionando mais fibras e minerais, mantendo o nível de proteína e reduzindo calorias, gorduras e colesterol).
Por mais que a presença de produtos híbridos seja relativamente nova nos supermercados, o conceito não é novidade entre chefs e cozinheiros. A James Beard Foundation é uma organização sem fins lucrativos que defende um padrão de qualidade baseado no talento e na sustentabilidade, apoiando pessoas que formam a cultura alimentar da América através de seus Programas de Impacto. E um dos programas de maior sucesso é o Blended Burger Project: desde 2015, a fundação, em parceria com o Mushroom Council, desafia chefs de todos os Estados Unidos a criarem hambúrgueres que sejam mais saudáveis e sustentáveis, substituindo 25% da carne animal por cogumelos frescos.
No primeiro ano da competição, poucas dezenas de cozinheiros participaram. Em 2019, último ano do evento (que foi temporariamente suspenso por causa da pandemia), o número de inscritos subiu para 500. Criatividade culinária, apresentação e perfil de sabor são os critérios que levam o painel de especialistas da fundação a escolherem 5 vencedores entre os 25 mais votados online. Cada um dos chefs vencedores ganha 5 mil dólares e uma viagem para cozinhar seu hambúrguer híbrido na James Beard House, em Nova Iorque. Lá, os convidados escolhem o favorito da noite, que ganha um reconhecimento especial do People ‘s Choice. A intenção do Blended Burger Project é educar as pessoas sobre o futuro da alimentação e mostrar que é possível darmos um passo em direção a um mundo mais equilibrado sem abrir mão de hábitos e prazeres. Os cogumelos são os escolhidos para o “blend” por dois motivos: primeiro, por terem uma pegada ambiental baixa, gastando pouca água, energia e espaço, já que podem ser cultivados até em canteiros verticais. Segundo, por terem textura semelhante à da carne, boas propriedades de retenção de umidade e sabor umami, que realça o gosto do hambúrguer mesmo quando a quantidade de sal é reduzida.
De fato, um estudo conjunto de 2014 da UC Davis e do Culinary Institute of America, publicado no Journal of Food and Science, mostrou que misturar a carne moída do hamburguer com cogumelos, numa proporção de até 50-50%, torna a preparação mais saborosa do que a original graças ao umami, confirmando que é possível reduzir a carne – e consequentemente o teor de gordura, sódio, colesterol e calorias gerais – de um produto sem sacrificar seu sabor.
Em 2016, a Sodexo, gigante de serviços de alimentação, trocou os hambúrgueres de carne bovina por hambúrgueres híbridos com cogumelos em cerca de 250 distritos escolares (órgãos responsáveis pela administração de todas as escolas públicas de uma região) atendidos pela empresa nos EUA. Na época, os testes piloto nas escolas demonstraram que 85% dos estudantes preferiram os novos hambúrgueres aos antigos. Essa simples mudança na receita representa 250 milhões de calorias e 15 milhões de gramas de gordura saturada a menos nas 7 milhões de refeições que a Sodexo serve para os alunos todos os meses.
Em 2017, o The Mushroom Council lançou o blenditarian.com, um hub online que registra e celebra a crescente popularidade dos alimentos híbridos nos restaurantes, lanchonetes e cozinhas caseiras dos Estados Unidos e mundo afora. Sob o slogan “o blend é o futuro”, o movimento incentiva que mais pessoas se tornem “blenditarianas” e experimentem fazer essas misturas tanto pelo sabor, quanto pela saúde e pelo meio ambiente. A aposta do slogan parece ter sido acertada, já que pouco tempo depois da criação do hub o “blend”, inicialmente restrito a um nicho mais artesanal, começou a chegar nas prateleiras dos supermercados na forma de produtos prontos para serem consumidos por qualquer um.
Os vários tipos e sabores garantem que exista um produto híbrido para cada pessoa que quer diminuir um pouco – ou até bastante – a ingestão de produtos de origem animal sem ter que migrar para alternativas 100% vegetais. Por mais que o veganismo seja um movimento com cada vez mais adesão, apoio e potência, muitas pessoas ainda têm dificuldade em adotar essa dieta e estão utilizando os produtos híbridos para reduzir seu consumo de carne. Entender que a demanda por carne vai continuar crescendo, mas que seus impactos podem ser minimizados com a inclusão de plantas na sua composição, parece ser uma abordagem realista que nos permite pensar em soluções concretas para um planeta que precisará, em pouco tempo, alimentar 10 bilhões de pessoas.
O Reino Unido acaba de lançar a segunda parte de sua Estratégia Alimentar Nacional, um relatório de 176 páginas desenvolvido para embasar a criação de um sistema alimentar que seja melhor para as pessoas e para o planeta. Entre as principais recomendações está a redução do consumo de carne em 30% na próxima década. De acordo com o relatório, apesar de 85% das terras agrícolas do Reino Unido serem utilizadas para a criação de animais, a produção de carnes, ovo, leite e derivados fornece apenas 32% das calorias consumidas pela população. Por outro lado, os 15% restantes que são usados para o cultivo de plantas para consumo humano fornecem 68% das calorias consumidas pelos britânicos.
Além da eficiência na conversão de calorias, o relatório também aponta para o impacto que a produção e o consumo de carne têm sobre a saúde humana e planetária. O Plano afirma que o gado, por exemplo, emite 25 vezes mais gases de efeito estufa que a produção de tofu. Diz ainda que, à medida que o consumo de carne cresce, aumentam também as operações agrícolas intensivas ligadas ao uso excessivo de antibióticos e contaminação da água. Segundo o relatório, o número de fazendas pecuárias intensivas aumentou 25% no Reino Unido em 2021.
Como uma das soluções propostas, o Plano recomenda o consumo de proteínas alternativas que mimetizam a experiência sensorial dos produtos de origem animal quanto ao sabor, textura, aroma e aparência. Estima-se que a substituição por opções vegetais e obtidas por fermentação poderia gerar uma diminuição de 20% no consumo de carne na próxima década. Não por acaso, o relatório defende que o Governo invista 50 milhões de libras no mercado de proteínas sustentáveis.
De acordo com a gerente de políticas públicas do The Good Food Institute na Europa, Ellie Walden, não há como o Reino Unido cumprir suas metas climáticas sem impor mudanças drásticas na dieta da população. “Até agora, a responsabilidade de cortar ou diminuir o consumo de carne tem recaído sobre os indivíduos. Por isso, é estimulante ver a Estratégia Alimentar Nacional focada em fazer das proteínas alternativas à escolha padrão. Os produtos análogos vegetais ou obtidos por fermentação garantem um produto com sabor e aparência similar com um custo ambiental muito menor, criando milhares de empregos verdes (que diminuem o impacto ambiental) e permitindo que as pessoas continuem comendo os alimentos que gostam”.
No mesmo caminho dos britânicos, estão os espanhóis. Ainda neste mês, o ministro do Meio Ambiente da Espanha, Alberto Garzón, também defendeu a redução do consumo de carne pelos cidadãos. Ele divulgou um vídeo pedindo aos espanhóis que reduzam a taxa de consumo semanal de 1kg para 200g a 500g de carne, a quantidade semanal recomendada pela Agência Espanhola de Segurança Alimentar e Nutrição.
Para o diretor de políticas públicas do The Good Food Institute Brasil, Alexandre Cabral, o exemplo europeu se aplica a muitas outras regiões do planeta e todos os grandes mercados produtores e consumidores de carne precisam avaliar com cautela esta problemática alimentar. “No Brasil, o ambiente industrial já se encontra bastante evoluído, com as principais indústrias de alimentos oferecendo proteínas alternativas em seu portfólio. No ambiente regulatório, o Governo vem se movendo de forma sinérgica em diferentes frentes. Do ponto de vista macro, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) desenvolve uma Política Nacional sobre sistemas alimentares contemporâneos, na qual as proteínas alternativas têm um lugar de destaque. Do ponto de vista mais operacional, ligado às estruturas de registro e inspeção, tanto o MAPA quanto a Anvisa estão mobilizados no debate da configuração desta estrutura regulatória”.
Prova disso é a Tomada Pública de Subsídios como forma de embasar os reguladores com as impressões da sociedade e do mercado sobre os elementos necessários para o marco regulatório. Na área de carne cultivada, os agentes reguladores recebem um conjunto de informações de caráter científico, ao mesmo tempo em que estão dialogando com seus colegas do exterior numa troca de experiências visando definir o perfil do marco regulatório brasileiro para o setor. “O GFI Brasil está colaborando ativamente em todas estas frentes, conectando os atores nacionais e internacionais para um ambiente de negócios competitivo e favorável à inovação”, afirma Cabral.
Em março deste ano, a BRF anunciou uma parceria com a startup israelense Aleph Farms para produzir carne cultivada no Brasil, com a promessa de comercializar produtos nos supermercados já em 2024. A notícia foi recebida com entusiasmo pelo setor de proteínas alternativas, mas também levantou inúmeras questões, especialmente relacionadas ao processo de produção e regulação da tecnologia de cultivo celular. Por isso, o The Good Food Institute Brasil organizou um workshop para reguladores brasileiros, com foco nas equipes do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (DIPOA/MAPA) e da Gerência Geral de Alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (GGALI/Anvisa).
Durante os dois primeiros dias de evento, realizados em 17 e 22 de junho, foram apresentadas informações sobre a técnica de cultivo celular para a obtenção de produtos cárneos, além de pontos de atenção que devem ser considerados no processo de regulação, com especial atenção às questões de segurança do processo e do produto final. O público, formado por 70 profissionais, teve a oportunidade de assistir às exposições da física e professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Dra. Aline Bruna da Silva; do biólogo e professor da UniSociesc, Dr. Bruno Bellagamba; do cientista do The Good Food Institute Estados Unidos, Dr. Elliot Swartz; e do engenheiro químico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Dr. Luismar Porto.
As instalações e os desafios de escala
A fim de alinhar o conhecimento sobre a técnica e deixar todos na mesma página, o professor Luismar fez um breve resumo sobre como é o processo de cultivo celular para a obtenção da carne cultivada. “Tecnicamente, estamos falando de um produto à base de agregados de células animais produzidas em biorreatores. Fundamentalmente, o processo envolve a coleta de células, que podem vir de uma biópsia ou de uma célula embrionária. Essas linhagens celulares primárias eventualmente serão utilizadas para bancos de células, para posterior expansão ou multiplicação celular em biorreatores específicos”, explicou.
Comparando a produção convencional com a produção de carne cultivada, Luismar destacou entre os principais benefícios que podem ser alcançados com a técnica, a produtividade. “O tempo que se leva para obter carne bovina é da ordem de dois anos, com uma baixa conversão nesse processo. Uma pequena parte dos nutrientes e da energia utilizada para obter essa carne é disponibilizada no final como proteína para alimentação humana. Enquanto que, para a carne cultivada, é possível obter proteína para consumo em cerca de duas semanas”.
E os impactos apontados não se limitam a isso. Segundo o professor, há também vantagens para o meio ambiente. “Além do ganho de tempo, teremos ganhos indiretos, como a diminuição do uso de terras, não só para a criação de gado, por exemplo, mas para a plantação de alimentos para esses animais. Deixa de ser necessária a criação, o confinamento, o abate e o transporte e vai direto para o processamento, a partir dessa base biotecnológica que está muito centrada nos biorreatores”.
Apesar de soar futurista, os biorreatores são equipamentos amplamente utilizados na indústria de bebidas e alimentos. Por exemplo, para a produção de cerveja e produtos lácteos. No entanto, os biorreatores teciduais são diferentes dos utilizados para fermentação, pois normalmente precisam atender à necessidade de que as células animais, sobretudo quando cultivadas de forma isolada, são muito sensíveis aos esquemas de agitação e mistura. “Temos biorreatores de parede rotativa, de movimento ondulatório, de cultura celular e bioimpressora. No entanto, são biorreatores comerciais, o desafio é criar um biorreator de escala industrial”.
Como resultado final desse processo industrial, espera-se obter um produto que mimetize a experiência sensorial da carne convencional em aparência, textura e sabor. No entanto, para o professor Luismar, a tecnologia de cultivo celular pode ir além. “Eu quero crer que, no futuro, não haverá um comprometimento da indústria em apenas mimetizar a carne convencional. Eu gosto da analogia de que “sorvete não dá em árvore”, e, no entanto, as pessoas preferem comer o sorvete do que os seus componentes naturais. Então, é muito possível que essa tecnologia gere um conjunto de novas estruturas à base de proteínas animais, e que não necessariamente mimetizam a carne obtida pelo processo convencional”.
No entanto, para que tudo isso aconteça no Brasil, ao ponto de colocar o país no mapa da tecnologia de cultivo celular, é preciso acelerar as inovações e as pesquisas neste campo. “Atualmente, as iniciativas estão mais concentradas nos Estados Unidos, Europa, Israel, alguns países da Ásia, como Cingapura e China, além da Austrália. O maior gap está na África e na América Latina, com poucas iniciativas em andamento. Estamos, aparentemente, perdendo o compasso”, conclui o professor.
Da biópsia ao biorreator
Seguindo com as exposições, o professor Bruno Bellagamba enfatizou a importância do evento. “Poder discutir todos esses assuntos do ponto de vista regulatório, com as agências reguladoras, é um momento histórico para o país.”. Em sua fala, Bellagamba apresentou aspectos relevantes sobre as primeiras etapas do processo de cultivo celular. A partir de dados do grupo de estudos do professor Mark Post, conhecido por produzir o primeiro hambúrguer cultivado em 2013, o pesquisador apresentou as duas formas de fazer a biópsia para retirada de células do animal: por agulha ou por incisão.
De acordo com o professor, a biópsia por agulha gera pouco ou nenhum desconforto ao animal e exige pouca sedação e analgesia. No entanto, obtém-se pouca quantidade de amostra de células, cerca de 0,5g, exigindo várias amostragens. Já a incisão, processo para obter músculo e tecido adiposo, garante maior quantidade de tecido, cerca de 10g a 15g, resultando em apenas uma amostragem por animal. Contudo, gera maior desconforto e exige maior dose de analgésicos e sedativos. “Portanto, também há uma questão de bem-estar animal para escolher entre um método e outro”, afirma.
Além disso, há, ainda, a questão do risco de contaminação que pode sofrer o material biológico coletado. No procedimento de coleta por agulha o potencial de contaminação é baixo porque a incisão é bem menor. Já na incisão com bisturi, seria necessário um cuidado maior com a assepsia do local onde o material será coletado para evitar contaminação com microorganismos que podem ser propagados na cultura celular posteriormente. “Do ponto de vista regulatório seria importante observar questões relacionadas ao manejo do animal, antes e após as biópsias; limitar o número de procedimentos para evitar sofrimento animal desnecessário; intervalo mínimo entre os procedimentos; quantidade máxima de tecido coletado por biópsia para se ter um bom início de cultivo, sem comprometer a saúde do animal; e o armazenamento e transporte da amostra para processamento posterior”, apontou Bellagamba.
Com relação à escolha do animal doador, também há pontos para serem considerados. “Seria um indivíduo macho, pois apresentam mais receptores androgênicos, o que garante maior proliferação celular; com alguns meses de idade, uma vez que apresentam mais células satélites; mantido em manejo extensivo, sem confinamento, para gerar menor estresse, com alimentação a base de forragem, capazes de gerar mais fibras do tipo I, que garantem contração rápida e mais células satélites. A biópsia deveria, ainda, ser feita na parte dianteira, na região do pescoço até as costelas”, indicou.
Depois que o material é coletado, precisa ser levado para um laboratório de cultivo celular para que as células sejam isoladas e multiplicadas. Cada tipo de célula precisa de um meio de cultivo com algumas diferenças, mas que sejam ricos em nutrientes e fatores de crescimento para que continuem se proliferando e permanecendo multipotentes. Segundo o professor, o processo é simples, mas precisa ser feito com cuidados de assepsia rigorosos para evitar contaminação por microorganismos. “Com relação ao cultivo em larga escala, do ponto de vista da qualidade do processo, idealmente, a cada passagem de processo, seria necessário um protocolo de qualidade específico, atentando-se a: viabilidade celular, controle microbiológico, estabilidade genética e certificação de que não estão sendo produzidos metabólitos tóxicos que podem ser prejudiciais às amostras e à saúde humana”.
Contribuindo com a apresentação do professor Bruno e respondendo a questões trazidas pelo MAPA, o professor Luismar chamou a atenção para a sustentabilidade desse processo e à garantia do bem-estar animal. Segundo ele, uma célula embrionária é capaz de gerar milhares de toneladas de carne. “Em princípio, é possível fazer um banco de células primárias e um outro banco de células secundárias, com possibilidade de ampliá-los ainda mais. A partir delas, podem ser geradas milhares de toneladas de carne em instalações industriais, de forma que, em tese, uma única célula-tronco pode ser utilizada por dez anos em uma produção de larga escala. Ou seja, não vai ser necessário fazer biópsias com frequência.
Com relação aos meios nutritivos, Luismar ponderou que já há alternativas ao soro fetal bovino, utilizados nas primeiras experiências com carne cultivada. “As propostas de comercialização de meio nutritivo, partem do princípio de que não serão utilizados soro fetal bovino, pois esse seria um contraponto muito forte em relação aos direitos dos animais. Também há claims que já apontam para um domínio tecnológico e patentes, de que não serão utilizados antibióticos em nenhuma parte do processo. É claro que isso é um grande desafio, que precisa ser provado em larga escala, mas as propostas que estão surgindo vão nessa direção. Por isso, do ponto de vista regulatório, será necessário criar mecanismos de controle das matérias-primas nas entradas desses biorreatores com relação à purificação e à ausÊncia de vírus, bactérias e fungos, assim como uma inspeção detalhada na saída”.
Do biorreator ao bife
Contribuindo com informações referentes à próxima etapa do cultivo celular, a professora Aline destacou o principal objetivo da técnica, que é mimetizar a carne de origem animal com perfeição. Segundo ela, a engenharia de tecidos tem como meta o corte de carne do tipo prime, caracterizado por conteúdo magro e gordo (células de músculo e de gordura). “O resultado final para o consumidor deve ser de palatabilidade, garantindo aparência, suculência, maciez e sabor. Isso vai depender de como essas células de músculo e gordura estarão distribuídas para formar esse tecido tridimensional. Por isso, precisamos entender a estrutura da carne (músculo esquelético), que tem uma composição aproximada de 90% de fibras musculares, 10% de tecidos conjuntivos e gordurosos e 0,3% de sangue”.
Isso leva a uma etapa fundamental do processo, que é a maturação das células, logo após a sua expansão em um biorreator. “A maturação também pode ser feita em um biorreator, por meio de uma estrutura tridimensional que vai mimetizar a matriz extracelular natural, chamada de scaffold, gerando posteriormente pedaços inteiros como um bife. Também pode ser utilizado materiais bidimensionais para gerar um agregado de células, que depois podem ser estruturadas em carnes processadas, como uma carne moída, por exemplo”.
Vale destacar que essa matriz extracelular (scaffold), que nada mais é do que a parte acelular de qualquer tecido ou órgão, tem a função de dar suporte mecânico para as células, com pontos de adesão, para que as células possam aderir, e, depois, na fase de maturação, se diferenciar no tipo celular adequado. Além disso, precisa ter características físico-químicas e mecânicas similares às células, bem como porosidade para que as células possam crescer, se expandir e formar uma estrutura tridimensional. “Um dos pilares da engenharia de tecidos é desenvolver de forma sintética essa matriz extracelular, que pode ser diferente para cada tipo de tecido que se pretende produzir. Existem muitas formas para se fazer um scaffold, como a partir de nanofibras poliméricas biodegradáveis, por exemplo”.
Além dessas características, Aline também defende que os scaffolds sejam de origem vegetal, comestíveis, baratos, com processamento escalável, e com resistência mecânica compatível com as tensões geradas no interior do biorreator. Outras possibilidades de materiais para produção de scaffolds são: alginato, gelatina, quitosana, proteína de soja, celulose, micélios fúngicos (quitina, celulose, proteínas), frutas ou vegetais descelularizados, etc.
Outro ponto importante a se destacar é a vascularização da carne cultivada, uma vez que os tecidos musculares são ricos em redes microvasculares. No entanto, do ponto de vista técnico, segundo Aline, os vasos sanguíneos podem não ser um componente essencial do sabor ou da textura da carne. “Por isso, o que tem se pensado é substituir a rede de vasos por biorreatores de perfusão, que podem fazer o papel das redes microvasculares”.
Finalizando a sua apresentação, a professora citou alguns lançamentos do mercado internacional, chamando a atenção para as carnes híbridas. “Os primeiros lançamentos não são 100% carne cultivada. A carne de frango da EatJust, já regulamentada em Cingapura, tem 70% de frango cultivado e 30% de base vegetal. Também temos a Super Meat, empresa israelense que fabrica produtos plant-based, que propões adicionar até 30% de células cultivadas ao produto vegetal. Isso deve conferir sabor e conteúdo nutricional. A Higher Steaks, startup britânica que produziu um protótipo de bacon, utiliza 50% de células musculares e 50% de scaffold à base de plantas, proteínas e gorduras vegetais. Com relação à bioimpressão, a KFC firmou uma parceria com a empresa russa Bioprinting Solutions, para desenvolver empanados de frango com tecnologia de bioimpressão, utilizando células de frango e material vegetal. Já a Aleph Farms anunciou que produziu um bife por bioimpressão em fevereiro deste ano”.
Segurança de alimentos e considerações sobre o impacto ao meio ambiente
Dr. Elliot começou sua fala apresentando a linha do tempo da carne cultivada, que teve início em 2013, com o primeiro hambúrguer cultivado, desenvolvido pelo já mencionado professor Mark Post, na Holanda. De lá pra cá, já são mais de 100 empresas ao redor do mundo atuando com a tecnologia, com investimentos avaliados em aproximadamente USD $225 milhões apenas em 2020, além da primeira experiência de regulamentação ocorrida em Cingapura. Com relação às perspectivas de futuro, o Dr. Elliot aponta para um movimento crescente de processos regulatórios em todo o planeta, e avanços que possibilitem preços competitivos para a carne cultivada. E, segundo a consultoria McKinsey, até 2030, a produção estimada de carne cultivada poderá medir entre 0,4 a 2,1 milhões de toneladas métricas. Isso significa 0,1 a 0,56% da demanda global de carne (375 milhões de toneladas métricas).
Falando sobre os impactos ambientais da produção da carne cultivada, o Dr. Elliot prevê que a tecnologia provavelmente terá uma pegada ambiental menor em comparação com a produção de carne convencional. “Se energias renováveis forem usadas, a pegada de carbono cai em 80%, em relação à produção convencional”, afirmou. A projeção foi feita com base em um estudo encomendado pelo GFI e pela organização Gaia, chamado de LCA (avaliação do ciclo de vida). Com base em dados fornecidos por 15 empresas da cadeia de abastecimento de carne cultivada, foi criado um modelo de como a carne cultivada pode ser produzida até o ano de 2030, avaliando os impactos ambientais de uma instalação em escala comercial que produz 10.000 toneladas métricas de um produto de carne cultivada por ano. Para nutrir as células, seria utilizado um meio livre de antibióticos e soro, incluindo apenas aminoácidos derivados principalmente de hidrolizado de soja e suplementadas com aminoácidos de fermentação e síntese química; glicose de milho; proteínas recombinantes e fatores de crescimento produzidos por fermentação.
Seguindo o modelo, os impactos do aquecimento global seriam diminuídos em 17%, 52% e 85% a 92% em comparação à produção convencional de frango, porco e boi, respectivamente. Também foi possível comprovar que a carne cultivada é 3,5 vezes mais eficiente do que o frango convencional, que é a mais eficiente dentre as carnes convencionais, na conversão de ração em carne. Por isso, a produção de carne cultivada reduziria o uso da terra em 63% a 95% em comparação com a carne convencional. Por fim, foi possível concluir que a carne cultivada também deve ser menos poluente à água, com redução de 29% a 93% em comparação com todas as formas de carne convencional, e usar significativamente menos água azul, encontrada em reservatórios de água superficial e subterrânea, com redução de 51% a 78% em relação à produção convencional de carne bovina (quase o mesmo que frango e porco).
Na segunda parte de sua apresentação, o Dr. Elliot falou sobre a segurança do processo. “De que forma o processo de produção de carne cultivada pode representar novas ameaças à segurança de alimentos para consumidores e como podemos mitigar esse risco?”. Para isso, indicou para cada etapa da produção – seleção da linhagem celular, proliferação, diferenciação e maturação, separação das células de interesse e formulação do produto final, fabricação e embalagem – algumas possibilidades para garantir que o alimento seja seguro. “No entanto, destaco que não são recomendações ou ações regulamentares formais, uma vez que alguns detalhes são hipotéticos ou estão sujeitos a alterações.”.
As orientações envolvem selecionar animais saudáveis para coleta de células, verificar se as células estão livres de agentes adventícios, prevenir a contaminação cruzada, não utilizar produtos de origem animal como meio nutritivo, limpar e esterilizar os biorreatores, utilizar materiais seguros, sem origem animal, comestíveis ou biodegradáveis para produzir os scaffolds, realizar testes para detectar a presença de alergênicos e resíduos, evitar erros durante o processo de embalagem que que possam introduzir micróbios patogênicos no produto, apresentar tabela nutricional detalhada, e realizar procedimentos de manuseio e cozimento semelhantes ao da carne convencional.
O Dr. Elliot trouxe, ainda, pontos de atenção fundamentais para acelerar o desenvolvimento da indústria de carne cultivada, e que tem relação direta com os processos regulatórios. “A falta de orientação aberta está retardando os fabricantes de carne cultivada de várias maneiras, incluindo o projeto das instalações, as especificações dos equipamentos e a compreensão dos dados necessários para coletar e enviar, além de atrasar os fornecedores de carne cultivada, incluindo fornecedores de insumos para meios de cultura de células, materiais de suporte, auxiliares de processamento e equipamentos. Um desafio contínuo será desenvolver estruturas em diferentes regiões que garantam a segurança do consumidor, sem sobrecarregar significativamente os fabricantes ou diferir umas das outras.”, afirmou.
Analisando o cenário regulatório internacional, o Dr. Elliot acredita que, depois de Cingapura, o Canadá, os Estados Unidos, a União Europeia, a Austrália e a Nova Zelândia devem ser os próximos a aprovar a regulação da carne cultivada. Enquanto isso, Japão e Israel seguem desenvolvendo a estrutura de seus documentos regulatórios. Já o Brasil, a Índia e a China estão monitorando os movimentos globalmente para definirem que estratégias vão desempenhar.
Próximos passos
O workshop segue até o início de julho, com atividades fechadas para a ANVISA e o MAPA, entre os dias 29 e 30 de junho e 1 de julho. Neste período, o grupo irá conhecer e trocar experiências sobre processos regulatórios em carne cultivada com representantes dos Estados Unidos, Europa e Singapura.
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Esta posição vai liderar pesquisas sobre o consumidor e o mercado brasileiro, principalmente para produção de dados primários. Além disso, o GFI Brasil é o ponto focal para a América Latina e o Caribe, então também planejamos compilar dados sobre esta região como uma segunda etapa. No entanto, o setor de Proteínas Alternativas é muito global, por isso é necessário estar conectado com os acontecimentos e descobertas do mundo todo.
Candidate-se até 14/07 neste link.
Tenha mais informações sobre a vaga na descrição do cargo disponível neste link.
O The Good Food Institute Brasil lança o Projeto Biomas que vai financiar pesquisas exploratórias com potencial para transformar produtos vegetais nativos dos biomas da Amazônia e Cerrado em ingredientes alimentícios demandados pela indústria de proteínas alternativas. Com aporte de até R$135 mil por projeto, os estudos deverão se concentrar na investigação de quatro espécies amazônicas (babaçu, guaraná, cupuaçu e castanha-do-Brasil) e três do Cerrado (baru, macaúba e pequi). Os pesquisadores interessados devem enviar suas candidaturas até o dia 15 de julho de 2021, às 22h de Brasília. Os projetos deverão ter prazo de execução de, no máximo, 12 (doze) meses e desenvolvidos no Brasil.
Para se inscrever, basta ler o edital e seguir as instruções.
Por meio do programa que conta com aporte de recursos da Fundação CLUA – Climate Land and Use Alliance, o GFI espera criar ferramentas de acesso livre e métodos para o desenvolvimento de alimentos que sejam saborosos e acessíveis. “No Brasil, temos o privilégio de contar com uma vasta biodiversidade, com potencial para transformar espécies nativas de manejos sustentáveis em ingredientes para o mercado de produtos plant-based. As pesquisas deverão estabelecer caminhos para valorização, ampliação das informações tecnológicas das espécies nativas e a ampliação do uso desse enorme potencial natural como ingredientes em produtos vegetais, potencializando o desenvolvimento econômico regional”, explica a Dra. Katherine de Matos, diretora de Ciência e Tecnologia do GFI Brasil.
A seleção dos sete produtos nativos ocorreu após levantamento feito pelo próprio GFI Brasil que levou em consideração o potencial técnico e econômico de cada espécie. Para chegar aos resultados econômicos, a instituição utilizou o número de comunidades produtoras, volume de produção e maturidade da cadeia produtiva. Para a análise de potencial técnico, foram utilizados critérios como a composição química dos produtos, o potencial tecnológico e aspectos nutricionais.
“A potencialidade da flora nativa brasileira não está refletida nos supermercados, nas feiras e muito menos na cozinha do brasileiro. Como resultado, a sociedade deixa de aproveitar os benefícios decorrentes dessa riqueza. No caso das espécies de uso alimentício, por exemplo, a sociedade acaba não se beneficiando dos elevados valores nutricionais presentes nas espécies nativas. A natureza é rica, entretanto, essa riqueza precisa e deve ser usada com sabedoria. Essa pode ser a grande saída da humanidade para o futuro”, defende Cristiana Ambiel, gerente de Ciência e Tecnologia do GFI Brasil.
Entre as possibilidades de temas de pesquisa apontadas pelo edital do Projeto Biomas, destacam-se a utilização de resíduos ou subprodutos industriais ou agroindustriais, desenvolvimento e otimização de processos para obtenção de ingredientes por meio de métodos ecológicos, viáveis e simples de serem aplicados na agroindústria e associações extrativistas locais, desenvolvimento de ingredientes para aplicação em produtos feitos de plantas que melhorem as características sensoriais de aparência, cor, sabor e textura, promovam incremento nos aspectos nutricionais e reduzam o custo no produto final, além do desenvolvimento de produtos com apelo clean label, dentre outros. Para contribuir na compreensão do edital, o GFI vai promover, no dia 23 de junho, das 14h às 15h30, o workshop “Entendendo o Programa de Financiamento à Pesquisa Exploratória com foco nos Biomas Amazônia e Cerrado”.
O GFI Brasil incentiva o investimento em pesquisa e desenvolvimento da biodiversidade para encontrar inovações tecnológicas que supram as demandas da indústria de forma sustentável. Desta forma, a instituição promove a conservação da floresta em pé, proporciona o desenvolvimento de novas cadeias produtivas e a melhoria da qualidade de vida das comunidades locais.
Conheça um pouco mais sobre os ingredientes selecionados pelo GFI e suas propriedades:
Com significativa produção nacional de cerca de 32.900 toneladas no ano de 2019 segundo o IBGE, a castanha-do-brasil in natura constitui uma favorável fonte proteica (15,60%) e lipídica (61,00%). O seu óleo possui uma boa qualidade nutricional (85% de ácidos graxos insaturados) e apresenta índices de acidez e peróxidos que atendem a legislação brasileira para óleos vegetais comestíveis.
A produção nacional de Babaçu atingiu cerca de 48.700 toneladas no ano de 2019 segundo o IBGE, envolvendo cerca de 37 comunidades produtoras segundo a Conexsus. A amêndoa do babaçu possui 7,25 % de proteína e 66% de lipídeos. O seu óleo apresenta características funcionais interessantes por ser constituído de 83% de ácidos graxos saturados. Este produto, destinado à alimentação humana como suplemento alimentar, e, na medicina popular no tratamento de inflamações, já é produzido e comercializado por algumas comunidades.
Com uma produção de cerca de 787 toneladas no ano de 2017, segundo o IBGE, a polpa do cupuaçu é destinada à produção de diversos alimentos (polpa congelada, sorvete, geleias, etc). Dessa produção, gera-se como resíduo as sementes. A semente do cupuaçu possui 9,4% de proteína e 64,9% de lipídeos. Do óleo extraído dessa semente forma-se uma torta com altos teores de proteína (15,2%), fibras (47,6%) e lipídeos (21,0%). A torta de cupuaçu se mostra como uma alternativa para a elaboração de isolados proteicos devido a sua riqueza de aminoácidos essenciais, tornando-se uma fonte de proteína alternativa.
O Guaraná é normalmente comercializado na forma de xarope (para a produção de refrigerantes e bebidas energéticas) e em pó (para a produção de cápsulas ou vendidos em sachês e frascos). Tanto o xarope quanto o pó são produzidos a partir das sementes torradas do guaraná que possuem cerca de 15% de proteína e 40% de fibras. Deste processo gera-se como subprodutos a casca e a polpa do guaraná. A casca possui cerca de 10% de proteína e 70% de fibra e a polpa possui cerca de 17% de proteína. Faz-se necessário o aprofundamento de estudos a cerca do aproveitamento destes subprodutos pela indústria alimentícia.
Segundo dados do IBGE, a produção nacional de Macaúba atingiu cerca de 1.178 toneladas no ano de 2018. A polpa e amêndoa de macaúba podem ser industrialmente exploradas não só como fonte de óleos vegetais, mas também como fonte de proteínas e carboidratos. Estas propriedades são desejáveis para a formulação de diferentes tipos de alimentos, com destaque para a indústria de panificação e massas e a indústria de produtos cárneos, além da importância na fabricação de suplementos alimentares.
A produção nacional de Baru atingiu cerca de 69,3 toneladas no ano de 2019, segundo o IBGE. A polpa do baru possui 6,0% de proteína; 41,6% de fibras; 3,4% de lipídeos e 22,5% de carboidratos, sendo comercializada, usualmente, na forma de farinha. A amêndoa possui cerca de 30% de proteína; 15% de fibras e 40% de lipídeos, sendo comercializada na forma de amêndoa torrada. O óleo da amêndoa de baru tem elevado grau de insaturação, sendo similar ao óleo de oliva e, portanto, com potencial para ser usado como óleo de cozinha.
O Pequi tem produção nacional de cerca de 27.183 toneladas no ano de 2019. A polpa do pequi possui 3,7% de proteína; 15% de fibras e 33,4% de lipídeos. O óleo extraído da polpa se constitui de 62% de ácidos graxos insaturados. A polpa é comercializada na forma in natura, congelada e em conserva. Apesar de considerada uma proteína de baixa qualidade, é comparável à proteína da farinha de trigo, e pode ser adicionada de misturas para melhorar sua qualidade.