Casos de zoonoses reabrem o debate sobre os impactos da produção de proteína animal para a saúde global: Gripe Aviária, doença da Vaca Louca e Peste Suína Africana têm potencial pandêmico, provocam prejuízo econômico e expõem fragilidade dos sistemas alimentares.
Em fevereiro deste ano, uma menina de 11 anos infelizmente faleceu no Camboja após contrair o vírus da gripe aviária (H5N1). Este e outros relatos da doença na região das Américas e no Sudeste Asiático levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar, ainda no início do ano, que a situação da H5N1 é preocupante. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) emitiu um alerta epidemiológico enfatizando a importância do controle da infecção em aves e recomendando que os países reforcem a vigilância da gripe sazonal e zoonótica em animais e humanos. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) iniciou uma campanha de conscientização sobre a disseminação do vírus e o estado de Mato Grosso reforçou medidas sanitárias, principalmente nas áreas que fazem fronteira com a Bolívia.
Gripe Aviária (H5N1) no Brasil
Zoonoses são doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas. Em maio, o Brasil registrou oito casos de H5N1, sete no Espírito Santo e um no Rio de Janeiro. Mesmo com todos os casos envolvendo aves silvestres migratórias (sem diagnóstico da doença em humanos ou aves para consumo), no dia 22 de maio, o MAPA declarou emergência zoosanitária por 180 dias. Esse estado é declarado sempre que há risco de uma doença oriunda de um animal se propagar rapidamente e ajuda o governo a agilizar processos para combatê-la. A maior preocupação com essa medida era evitar que a gripe aviária chegasse nas granjas e nas criações de aves porque, como a doença se espalha rapidamente entre os animais, todos eles precisariam ser sacrificados, diminuindo a oferta de carne e ovos. Leia mais no G1
Até final de junho, o Brasil registrava 56 casos de H5N1 em aves silvestres e gaivotas. No entanto, no dia 2 de julho, o Espírito Santo, que já contava com 27 casos, registrou os primeiros casos em um pato e um ganso de criação doméstica. Seguindo o protocolo sanitário nacional, todos os animais da propriedade foram sacrificados. Aves de criação doméstica correm mais risco de contrair a doença porque circulam em ambiente externo, podendo ter contato com as aves silvestres que estavam infecctadas. Como na granja os animais ficam alojados o tempo inteiro, a chance desse contato é bem menor.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), as notificações em aves silvestres e de subsistência não comprometem o status do Brasil como “livre de H5N1” e nem trazem restrições ao comércio internacional de produtos avícolas brasileiros. Mesmo assim, o Japão suspendeu a compra de carne de frango do Espírito Santo, mercado que estava sendo conquistado pelos capixabas.
A transmissão para humanos é rara: segundo a OMS, entre 2003 e 2023, 874 pessoas foram infecctadas com a H5N1. No entanto, a taxa de mortalidade é alta, por volta de 52%, principalmente por insuficiência respiratória. O que criou um alerta maior nos órgãos de saúde é que, nos últimos anos, a gripe aviária chegou a países que antes estavam protegidos (Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, Panamá, Peru, Venezuela, Brasil e Chile) e que animais mamíferos começaram a contrair H5N1. Neste ano, mais de 3 mil leões-marinhos morreram por suspeita da doença no Peru e quase 9 mil animais mamíferos marinhos morreram devido à gripe aviária no Chile. Como mamíferos possuem células muito mais parecidas com as nossas, a preocupação dos especialistas é que o vírus consiga se adaptar a ponto de ser transmitido de pessoa para pessoa.
A transmissão para humanos se dá quando a pessoa tem contato direto com as secreções e fluídos de um animal infecctado, esteja ele vivo ou morto, porque as aves eliminam o vírus por meio das fezes e secreções respiratórias. Por isso, a doença também pode ser transmitida por água e objetos contaminados com essas secreções. Até agora, não há registros de transmissão entre humanos.
Relembre outros casos de zoonoses
No final de fevereiro, um caso da doença da vaca louca (Encefalopatia Espongiforme Bovina – EEB) foi identificado no Pará. A doença é gerada pelo príon, uma proteína infecciosa naturalmente presente no cérebro de mamíferos que pode se tornar patogênica ao assumir uma forma anormal. Como afeta progressivamente o sistema nervoso, o príon altera o comportamento e provoca irritabilidade no animal, por isso o apelido “vaca louca”.
A forma mais grave de EEB está nos casos de origem clássica, que acontecem quando um animal doente é abatido e sua carne é consumida por outros animais ou por humanos. Esses casos são altamente trasmissíveis, não têm cura e são letais, inclusive para humanos. O primeiro surto da vaca louca estourou no Reino Unido nos anos 90 e fez com que mais de 4.4 milhões de animais fossem abatidos.
Aqui no Brasil é proibido o uso de restos de animais para fabricação de ração para bovinos e, em mais de 20 anos de monitoramento da doença, felizmente nunca foi identificado um caso de origem clássica da EEB no país. Mas, mesmo assim, o Ministério da Agricultura precisou suspender temporariamente a exportação de carne bovina para a China, o maior comprador do Brasil.
Esse auto embargo aconteceu por causa do acordo bilateral firmado entre os dois países em 2015, no qual o protocolo sanitário determina que as exportações sejam interrompidas caso a doença, mesmo que da forma atípica (que não apresenta riscos de transmissão para o rebanho ou para os humanos), seja identificada no país. Em seguida, Irã, Jordânia e Tailândia também suspenderam suas importações brasileiras, enquanto a Rússia apresentou embargo apenas à carne do Pará.
As estimativas apontam que o Brasil deixou de faturar cerca de 17 milhões de dólares por dia com a suspensão chinesa. Dessa receita, 42% vem do estado de Mato Grosso, maior produtor de carne bovina do país. Em fevereiro de 2021 o Brasil também registrou casos da EEB atípica. Na época, a China interrompeu a compra de carne bovina brasileira por 100 dias, derrubando em quase 50% as exportações e gerando um impacto muito negativo na indústria nacional.
Entre os anos de 2018 e 2019, a Peste Suína Africana (PSA) dizimou 60% da população de porcos na China. A doença fez com que o preço da carne subisse no mundo inteiro porque a China precisou comprar uma quantidade enorme de proteína animal no exterior. De acordo com o jornal The Guardian, a falta de carne causada pela pandemia animal foi tão grande que a demanda chinesa não seria suprida nem se todos os porcos vivos no mundo fossem abatidos. As Filipinas, o Vietnã e o Leste Europeu também foram severamente afetados e em maio de 2020 a Índia já havia reportado mais de 11 surtos da PSA. Os efeitos da doença duraram até 2021 e, de acordo com relatório da Rabobank, mesmo acontecendo simultaneamente à Covid-19, o impacto da Peste Suína Africana na produção de proteína global foi ainda mais severo do que o do coronavírus.
Como evitar que as doenças zoonóticas compromeam a oferta de alimentos? Entenda o papel das proteínas alternativas!
Por mais qualificado que seja o trabalho das agências sanitáras, a produção de proteína animal está intimamente ligada ao surgimento de zoonoses. . De acordo com a OMS, 60% das novas doenças infecciosas se originam em animais e a produção de alimentos é uma das principais rotas de transmissão dessas doenças.
Muitas vezes um único caso de uma dessas zoonoses torna obrigatório o abate de todos os animais por causa do alto risco de disseminação da doença. Em um mundo no qual pelo menos 828 milhões de pessoas passam fome, precisamos adotar medidas que não coloquem em risco a oferta de alimentos seguros e em quantidade suficiente para a população, e, que ao mesmo tempo, destine os recursos naturais disponíveis para a produção de comida diretamente para os humanos.
Segundo estimativa da ONU, caso o consumo de proteínas animais permaneça como hoje, será preciso aumentar a produção de alimentos em 70% para que toda a população tenha acesso à comida. A demanda por carne exigirá a criação de mais animais, que precisarão ser confinados em espaços inadequados, sem espaço para circulação, , em contato com diferentes espécies e com uso intensivo de antibióticos. Esse é o cenário ideal para o surgimento de novos patógenos e aumentam tanto o risco de epidemias quanto a insegurança alimentar e a segurança dos alimentos.
É aqui que novas fontes de proteínas vegetais, cultivadas ou obtidas por fermentação entram como solução para muitos dos problemas gerados pelo atual sistema de produção de alimentos. Elas se apresentam como o caminho mais promissor para diversificar, trazer resiliência, fortalecer e otimizar a produção e distribuição de alimentos, oferecendo mais fontes de proteínas sustentáveis e seguras, sem precisar mudar hábitos alimentares.
Os inúmeros avanços científicos e investimentos no setor mostram que as proteínas alternativas vieram com um propósito muito maior do que ser um nicho de mercado e produtores, indústria, governos e cientistas têm se unido para elaborar soluções que viabilizem o ganho de escala desses alimentos. O Brasil, que já é considerado o “celeiro do mundo”, pode assumir uma posição de liderança global na transição para um sistema alimentar baseado em proteínas alternativas, investindo em bioeconomia e na criação de produtos nacionais feitos com ingredientes locais dos nossos biomas. Temos tudo que é necessário para o bom desenvolvimento do setor, como um agronegócio forte, estrutura logística para distribuição global de produtos, clima favorável à produção, uma das biodiversidades mais ricas do mundo e um enorme capital intelectual ligado à produção de alimentos.
A população mundial vai continuar crescendo, assim como a demanda por alimentos. Devemos aproveitar o momento para garantir que teremos condições de entregar o volume de proteína que o planeta deseja consumir, mas sem os impactos negativos do sistema atual. Para isso, acreditamos que oferecer alimentos que tenham o mesmo sabor, aroma e textura, com equivalência de preço e sejam tão disponíveis quanto os convencionais, sejam um dos caminhos a seguir.