Parte planta, parte carne: como os alimentos híbridos suprem duas demandas com um único produto

Texto: Victoria Gadelha

Revisão: Vinícius Gallon

Novos estilos de vida mais conscientes e preocupados com a saúde e o meio ambiente têm estimulado o surgimento de novos gêneros alimentares, como o flexitarianismo, em que o consumidor diminui o consumo de produtos de origem animal sem interrompê-lo completamente. Enquanto as alternativas à base de plantas já possuem um lugar consolidado na dieta dos veganos e vegetarianos, os alimentos híbridos (blended, em inglês) vieram para atingir um público que se importa com saúde e sustentabilidade mas não quer abrir mão da experiência sensoral e da nutrição associadas à carne animal. Incorporar vegetais em pratos tradicionalmente feitos somente de carne, tornando-os híbridos, é uma forma de mudar a dieta dos consumidores sem a necessidade de grandes mudanças no estilo de vida.

Em vez de “plant-based”, é “plant forward”: esse termo guarda-chuva inclui qualquer dieta ou padrão alimentar de quem se compromete a comer mais vegetais e menos carne, mas não busca eliminar todos os produtos de origem animal nem se rotular de forma mais estrita. Os motivos, de acordo com o relatório “The Power of Meat”, lançado em 2020 pela The Food Industry Associaton (FMI), incluem o fato desses produtos facilitarem uma maior ingestão de vegetais e proporcionarem uma maneira mais saudável de comer carne.

Além de serem melhores para a saúde do consumidor (por conterem menos gorduras saturadas, colesterol e sódio, mais fibras e vitaminas) os produtos híbridos também são melhores para o meio ambiente, uma vez que a pecuária é uma das atividades que mais poluem, desmatam e emitem gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo o World Resources Institute (WRI), os norte-americanos comem 10 bilhões de hambúrgueres todos os anos. De acordo com o instituto, se um terço da carne em cada hambúrguer fosse substituída por cogumelos, seria economizada uma quantidade de água equivalente ao uso anual de água doméstica de 2,6 milhões de americanos. Em relação à poluição atmosférica, seria o equivalente a tirar 2,3 milhões de carros – e suas emissões de CO2 – das ruas por ano. Se tratando de terras, o WRI relata que o “blend” nos hambúrgueres reduziria o uso global de áreas agrícolas em mais de 36.260 km2, uma área que equivale a 4,395 campos de futebol.

Fora o impacto ambiental, a estratégia de incrementar vegetais em alimentos de origem animal também pode reduzir os custos de produção e comercialização de vários produtos. No caso da carne cultivada, por exemplo, misturar uma porcentagem de vegetais nas células animais é essencial para baratear sua produção que, apesar de já ser uma realidade, enfrenta desafios relacionados à redução de custos, aumento de escala e regulamentação legal. O único lugar no mundo em que a carne cultivada já está aprovada para venda é em Cingapura. No final de 2020, a marca Eat Just lançou sob o nome de GOOD Meat o primeiro frango cultivado híbrido, usando 70% de frango cultivado e 30% de base vegetal.

Enquanto a demanda por carne cresce, ao mesmo tempo em que a demanda por alternativas vegetais também, as empresas que produzem alimentos híbridos se posicionam bem entre as duas categorias. Nos últimos dois anos, gigantes do mercado embarcaram na tendência e adicionaram linhas híbridas aos seus catálogos de produtos. A Tyson, maior processadora de carne dos EUA, lançou pela marca Aidells Whole Blends salsichas e almôndegas de carne com misturas vegetais, como frango com espinafre e queijo feta ou frango com abacaxi desidratado. Já a Applegate criou um hambúrguer híbrido feito de carne de vaca com couve-flor, espinafre, lentilha e abóbora, e outro feito de peru com batata-doce, feijão branco, couve e cebola. Por utilizarem menos carne animal, eles conseguiram utilizar um produto “grass fed”, ou seja, de animais que foram alimentados naturalmente no pasto, sem o uso de rações com grãos e remédios. Cada hambúrguer da marca (106g) entrega por volta de 1⁄3 de xícara de vegetais. 

A Lisanatti Foods foi além e lançou um queijo híbrido: a mozzarella vegetal, à base de amêndoas, é misturada com caseína (proteína derivada do leite), permitindo que o queijo vegetal imite bem a textura do queijo animal. Dessa forma, o produto é apto para vegetarianos, flexitarianos e para o consumidor comum, mas não para quem é vegano ou tem alergia à proteína do leite de vaca (APLV). A Misfit Foods, que até 2019 era uma empresa que produzia sucos prensados a frio a partir de frutas imperfeitas (que seriam jogadas fora), decidiu entrar no ramo das carnes híbridas. Motivada pela urgência ambiental aliada à crescente demanda do mercado, a marca criou produtos misturados (como hambúrguer bovino com beterraba ou salsicha de frango com cenoura e curry) que vêm numa proporção de 50 a 60% carne e 40 a 50% vegetais, oferecendo ao consumidor um bom “empurrão” para longe da carne, mesmo enquanto ele come carne.

A Perdue, que está entre as principais empresas de grãos e de processamento de frango, peru e porco nos EUA, lançou também em 2019 a Chicken Plus, uma linha voltada para o público infantojuvenil que oferece nuggets híbridos, feitos de frango com couve-flor, grão de bico e proteínas vegetais. Essas formulações, feitas com ingredientes naturais, permitem que no mínimo 1⁄3 da carne animal seja substituída pela proteína à base de plantas, aumentando tanto o rendimento quanto o valor nutricional do produto (adicionando mais fibras e minerais, mantendo o nível de proteína e reduzindo calorias, gorduras e colesterol).

Por mais que a presença de produtos híbridos seja relativamente nova nos supermercados, o conceito não é novidade entre chefs e cozinheiros. A James Beard Foundation é uma organização sem fins lucrativos que defende um padrão de qualidade baseado no talento e na sustentabilidade, apoiando pessoas que formam a cultura alimentar da América através de seus Programas de Impacto. E um dos programas de maior sucesso é o Blended Burger Project: desde 2015, a fundação, em parceria com o Mushroom Council, desafia chefs de todos os Estados Unidos a criarem hambúrgueres que sejam mais saudáveis e sustentáveis, substituindo 25% da carne animal por cogumelos frescos. 

No primeiro ano da competição, poucas dezenas de cozinheiros participaram. Em 2019, último ano do evento (que foi temporariamente suspenso por causa da pandemia), o número de inscritos subiu para 500. Criatividade culinária, apresentação e perfil de sabor são os critérios que levam o painel de especialistas da fundação a escolherem 5 vencedores entre os 25 mais votados online. Cada um dos chefs vencedores ganha 5 mil dólares e uma viagem para cozinhar seu hambúrguer híbrido na James Beard House, em Nova Iorque. Lá, os convidados escolhem o favorito da noite, que ganha um reconhecimento especial do People ‘s Choice. A intenção do Blended Burger Project é educar as pessoas sobre o futuro da alimentação e mostrar que é possível darmos um passo em direção a um mundo mais equilibrado sem abrir mão de hábitos e prazeres. Os cogumelos são os escolhidos para o “blend” por dois motivos: primeiro, por terem uma pegada ambiental baixa, gastando pouca água, energia e espaço, já que podem ser cultivados até em canteiros verticais. Segundo, por terem textura semelhante à da carne, boas propriedades de retenção de umidade e sabor umami, que realça o gosto do hambúrguer mesmo quando a quantidade de sal é reduzida.

De fato, um estudo conjunto de 2014 da UC Davis e do Culinary Institute of America, publicado no Journal of Food and Science, mostrou que misturar a carne moída do hamburguer com cogumelos, numa proporção de até 50-50%, torna a preparação mais saborosa do que a original graças ao umami, confirmando que é possível reduzir a carne – e consequentemente o teor de gordura, sódio, colesterol e calorias gerais – de um produto sem sacrificar seu sabor. 

Em 2016, a Sodexo, gigante de serviços de alimentação, trocou os hambúrgueres de carne bovina por hambúrgueres híbridos com cogumelos em cerca de 250 distritos escolares (órgãos responsáveis pela administração de todas as escolas públicas de uma região) atendidos pela empresa nos EUA. Na época, os testes piloto nas escolas demonstraram que 85% dos estudantes preferiram os novos hambúrgueres aos antigos. Essa simples mudança na receita representa 250 milhões de calorias e 15 milhões de gramas de gordura saturada a menos nas 7 milhões de refeições que a Sodexo serve para os alunos todos os meses.

Em 2017, o The Mushroom Council lançou o blenditarian.com, um hub online que registra e celebra a crescente popularidade dos alimentos híbridos nos restaurantes, lanchonetes e cozinhas caseiras dos Estados Unidos e mundo afora. Sob o slogan “o blend é o futuro”, o movimento incentiva que mais pessoas se tornem “blenditarianas” e experimentem fazer essas misturas tanto pelo sabor, quanto pela saúde e pelo meio ambiente. A aposta do slogan parece ter sido acertada, já que pouco tempo depois da criação do hub o “blend”, inicialmente restrito a um nicho mais artesanal, começou a chegar nas prateleiras dos supermercados na forma de produtos prontos para serem consumidos por qualquer um.

Os vários tipos e sabores garantem que exista um produto híbrido para cada pessoa que quer diminuir um pouco – ou até bastante – a ingestão de produtos de origem animal sem ter que migrar para alternativas 100% vegetais. Por mais que o veganismo seja um movimento com cada vez mais adesão, apoio e potência, muitas pessoas ainda têm dificuldade em adotar essa dieta e estão utilizando os produtos híbridos para reduzir seu consumo de carne. Entender que a demanda por carne vai continuar crescendo, mas que seus impactos podem ser minimizados com a inclusão de plantas na sua composição, parece ser uma abordagem realista que nos permite pensar em soluções concretas para um planeta que precisará, em pouco tempo, alimentar 10 bilhões de pessoas.

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