O tema das proteínas alternativas vem chamando a atenção de cientistas, empresários, investidores e reguladores públicos no mundo todo. Não seria diferente no Brasil. O que está em pauta é uma reconfiguração do mercado de alimentos, proporcionada por inovações recentes em biotecnologia, aproveitadas pela engenharia de alimentos para desenvolver novos ingredientes e formulações. Como resultado, os produtos que chegam ao mercado têm conquistado cada vez mais consumidores desde os primeiros lançamentos no país em 2019.
O êxito deve-se, sobretudo, pela capacidade da indústria em inovar na produção de alimentos análogos de base vegetal que proporcionam a mesma experiência dos produtos de origem animal quanto ao sabor, aroma e textura. O setor também trabalha para agregar ainda mais valor aos produtos por meio de preço competitivo e conveniência. Essas estratégias atingem em cheio as expectativas do flexitariano, consumidor que deseja reduzir o consumo de alimentos de origem animal, sem interrompê-lo por completo, mas mantendo seus hábitos alimentares. Boas estratégias de marketing também souberam associar características de qualidade, segurança do alimento e sustentabilidade a esta nova categoria de produtos. Basta observar a utilização de termos como “sem colesterol”, “feito de plantas”, “100% vegetal”, entre outros, presentes nas embalagens e nas campanhas das marcas.
No mesmo campo de debate, encontram-se as possibilidades prometidas pelos produtos obtidos a partir de multiplicação celular, apontando disrupções importantes nos setores de carnes, ovos, pescados, leite e seus derivados. Soma-se a isso os riscos econômicos da necessidade de abate de rebanhos inteiros em decorrência dos surtos recentes causados pelos vírus da família HxNx e os danos à saúde pública decorrentes desses eventos.
Estes elementos apontam que não é mais o caso de pensarmos em “se”, mas “quando” e “em que medida” os alimentos baseados em proteínas alternativas serão uma alternativa real em suas diversas modalidades para o consumidor. Esse será o momento onde poderemos entender o quanto será reconfigurado o mercado de proteínas de origem animal para consumo humano a partir desse processo de inovação.
Mapeamentos recentes no Brasil e no mundo já apontam algumas tendências. Uma delas é o volume crescente de investimentos em startups, ao mesmo tempo determinante e determinado pelo aumento do número de novas empresas ano a ano. Outra tendência é a montagem de unidades de negócio de proteínas alternativas nas empresas já em atividade no mercado da proteína animal, inclusive nas de grande porte. Por fim, parece clara a mobilização e a especialização da cadeia de ingredientes para atender a demanda destes novos negócios.
O debate sobre as proteínas alternativas ganha força no momento atual. Assim como os biocombustíveis e a química de renováveis durante a primeira década deste século, a discussão sobre as tecnologias envolvidas e sua entrada no mercado dependem de fatores como investimentos, reações dos atores econômicos atuais, regulação e apoios governamentais. Há desafios muito semelhantes.
Primeiramente, o de tornar o produto final competitivo em custo e acesso em relação aos produtos de origem animal, entregando uma experiência sensorial e de sabor semelhantes. O desafio envolve a execução em larga escala de um processo produtivo baseado em uma nova tecnologia e a solução das questões técnicas e econômicas relacionadas a esse volume de produção.
Em seguida, a necessidade de um marco regulatório favorável à inovação, fundamental para um ambiente de negócios saudável e atrativo. Se no caso dos biocombustíveis os agentes econômicos anteriores atuavam no passado sobre marcos regulatórios e mecanismos de benefícios fiscais consolidados durante décadas, o mesmo ocorre com as proteínas alternativas hoje em dia. A demanda pela atualização do marco regulatório para produtos a base de plantas e obtidos por fermentação e a criação de um marco regulatório para produtos obtidos por multiplicação de células, tanto em âmbito nacional (pelas agências regulatórias de cada país) quanto internacional (no Codex Alimentarius) está colocada e é uma necessidade natural advinda de uma inovação disruptiva dessa magnitude.
Por fim, o desafio de definir a melhor estratégia de negócios na transição da fase de demonstração do produto para a produção e comercialização efetiva. O desenho de negócios, especialmente o investimento em plantas produtivas e estruturas de distribuição, é fortemente afetado pelo grau de maturidade das tecnologias capazes de entregar os produtos desejados. Neste sentido, algumas empresas de carne cultivada tem optado por inicialmente desenvolver análogos de carnes raras de baixo volume e alto valor de mercado. Exemplo semelhante ocorreu com a recomendação para o setor de biocombustíveis e química de renováveis considerar a produção de especialidades em vez de commodities durante o processo de escala de produção.
Como procuramos demonstrar, há paralelos importantes entre o momento atual do setor de alimentos feitos a partir de proteínas alternativas e o cenário do setor de biocombustíveis e química de renováveis no início deste século. Entre os aprendizados mais relevantes que podem ser trazidos de um cenário para o outro está a necessária capacidade de adaptação dos modelos de negócio e suas cadeias produtivas. Isso implica em diversificar as opções tecnológicas, antecipando e mitigando eventuais falhas ou mudanças de percurso durante o processo de escala. Além disso, desenvolver uma cadeia de fornecimento robusta em vez do desenho de negócios verticalizados pode ser uma opção capaz de minimizar a necessidade de investimentos fixos e ao mesmo tempo ajudar a lidar com variações inesperadas de preço dos produtos análogos, operados hoje dentro das regras dos mercados de commodities.
O Brasil pode se tornar protagonista no cenário atual das proteínas alternativas, desenvolvendo novas cadeias produtivas no setor de alimentos, intensivas em tecnologia e de alcance global. Os alimentos de base vegetal e os obtidos por multiplicação celular representam uma enorme oportunidade para produtores, empresários e o setor produtivo como um todo. O futuro da alimentação passa por pensarmos o alimento do futuro sob a ótica da bioinovação.
Autores
Raquel Casselli – Comunicadora Social, especialista em Sustentabilidade e gerente de Engajamento Corporativo no The Good Food Institute Brasil
Alexandre Cabral – Sociólogo, Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação, assessor de políticas públicas no The Good Food Institute Brasil
Texto originalmente publicado no site da ABBI – Associação Brasileira de Bioinovação